O treinamento do Exército que matou o soldado Vinicius Ibañez Riquelme aos 19 anos por exaustão foi marcado por fome, sede extrema e toda ordem de humilhação. Na decisão, que recebeu denúncia contra 11 militares e também pede a responsabilização do comandante do Exército em Bela Vista, coronel Kenji Alexandre Nakamura, o juiz federal Jorge Luiz de Oliveira da Silva, da Justiça Militar, destaca a privação de água, alimentação e práticas punitivas abusivas.
O mesmo documento não cita em nenhum momento o vírus, que, conforme divulgado pelo Exército, acometeu a tropa e levou 89 pessoas para o hospital. O surto também não atingiu os demais moradores da cidade de Bela Vista, a 324 km de Campo Grande.
“Narra a denúncia, oferecida pelo Ministério Público Militar, que, em abril de 2024, o soldado Vinicius Ibañez Riquelme, junto com outros 169 recrutas, participou de um exercício de campo conduzido pelo 10º Regimento de Cavalaria Mecanizado (10º R C Mec) em Bela Vista/MS. O treinamento, que durou de 22 a 26 de abril, foi marcado por condições extremamente adversas, onde os recrutas foram submetidos à privação de água e alimentação, além de práticas punitivas inadequadas e abusivas por parte de alguns instrutores”, informa o documento.
A decisão detalha o sofrimento de Vinícius nas últimas horas de vida. Um colega relata que o jovem aparentava cansaço, sede extrema, caiu durante o exercício e ficou um dia sem comer por castigo, fora isso ele já estava passando mal de saúde.
“Durante o exercício, o soldado Vinícius sofreu desidratação severa, resultante de privação de água e alimentos, combinada com exercícios físicos extenuantes, fatores que levaram a um quadro clínico que culminou em sua morte”. Ele também apresentava relevantes ferimentos no rosto, que foram atribuídos a uma possível queda.
Relatos dos participantes indicaram que outros recrutas também sofreram maus-tratos e agressões físicas e morais, o que levou ao aprofundamento das investigações e, posteriormente, à denúncia.
A decisão frisa que os recrutas foram expostos à condições desumanas: incluindo o uso de cordas para puxá-los durante o treinamento, rastejos punitivos, obrigados as a consumirem alho cru e realizar tarefas degradantes. Militar foi denunciado por queimar propositalmente a mão de colegas de farda ao servir sopa.
Enquanto isso, dois participantes do treinamento tiveram adesivo “cuidado, frágil” colado nos capacetes. Um porque tinha dificuldade na aprendizagem e o outro pela orientação sexual. Além das humilhações, os recrutas relataram chutes e tapas. Um deles levou o chute quando urinava, caindo em meio ao líquido.
Tudo em desacordo com a ordem de instrução do treinamento, que, em tese, deveria ser referencial para a instrução. A ordem determinava que não houvesse qualquer tipo de comportamento arbitrário e indignante, “recomendação esta que nem seria necessária, mas já dá o tom da sensibilidade desse tipo de instrução”, pondera o juiz.
Entretanto, a “ordem foi integralmente descumprida, conforme se pode notar da análise dos autos, dos quais submergem indícios de crimes e transgressões disciplinares”.
Durante a instrução de sobrevivência, os grupos eram responsáveis por obter água na natureza, mas o grupo do soldado Vinícius não conseguiu. “Não se pretende transformar jovens recrutas em guerreiros de selva, mas sim dar a noção de aspectos básicos de sobrevivência. Num cenário de extremo calor, mas ainda se requer a presença de instrutores responsáveis e de uma supervisão cerrada, o que há indícios de não ter sido feito”, diz o magistrado.
Os relatos são de que desde o segundo dia do treinamento o jovem não estava bem. “Há inúmeras narrativas de diversos problemas de ordem médica enfrentados pelo Sd Vinícius até o triste final, mas não houve um só instrutor, monitor ou membro da equipe de saúde que tenha realizado qualquer tipo de intervenção segura para preservar o militar”.
O treinamento não tinha presença de médico e a decisão mostra que a enfermeira desencorajava quem buscava atendimento. A sargento é citada por uma postura rigorosa, frequentemente gritando com os soldados recrutas e advertindo-os para não fazerem “corpo mole”.
“Há relatos de comportamento ríspido e desrespeitoso que podem ter contribuído para um ambiente onde recrutas se sentiram desencorajados a procurar ajuda médica. Os autos apresentam relatos de testemunhas noticiando que os recrutas não podiam entrar na ambulância, mesmo em casos de necessidade, atitude que pode ser considerada negligente e contrária aos deveres de um militar da saúde”.
A Justiça Militar aceitou denúncia contra 11 pessoas: 2º tenente Thiago Mauri Marçal, os 3ºs sargentos Victor Augusto Albuquerque Barros, Gustavo Doré Gonçalves, Arthur Castelani Lopes, Breno Gonçalves Salles. Além dos cabos Lucas Romero Silvestre, Everton Marim Figueiredo e os soldados Luiz Eduardo Coronel Siqueira, Weverton da Silva Dias, Cleison Rodrigues Marinho e Marcos Vinícius Irala dos Santos.
A reportagem entrou em contato com o Comando da 4ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, com sede em Dourados, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.
Exaustão – A certidão de óbito de Vinícius Ibañez Riquelme atesta morte por realização de exercícios físicos rigorosos. Há quase dois meses no Exército, o soldado participou de treinamento entre os dias 22 e 26 de abril. A atividade era no campo e os participantes ficavam incomunicáveis.
No dia 26, a sexta-feira da formatura dos soldados, a mãe de Vinícius foi comunicada que ele estava no Hospital de Bela Vista. O soldado foi transferido para a Santa Casa de Campo Grande, onde morreu em 27 de abril.
Fonte: Campo Grande News