Até que ponto o julgamento por clemência, onde as emoções predominam, os estigmas do passado influenciam e as questões sociais se destacam, pode concretizar a equidade? Vamos entender melhor o assunto.
Na última semana, em 2 de outubro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma decisão histórica e, por maioria, esclareceu que a soberania dos veredictos não é absoluta. Esta temática, que toca nas fundações da justiça penal e nos direitos fundamentais, merece nossa reflexão.
Como cediço, a partir da reforma do Código de Processo Penal, em 2008, instituiu-se no artigo 483, inciso III, o quesito obrigatório nas decisões do Tribunal do Júri, qual seja: “O jurado absolve o acusado?”. É sobre os limites dessa previsão legal que a Suprema Corte brasileira foi instada a se manifestar.
Relembrando, o recurso extraordinário envolvia a possibilidade de um novo julgamento pelo Tribunal do Júri, após uma decisão absolutória pelo Conselho de Sentença, sob a arguta de ser manifestamente contrária às provas dos autos. A questão central era se essa reanálise pela instância recursal violaria a tão proclamada soberania dos veredictos, garantida pelo artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”, da Constituição Federal.
Por este cenário, a Corte Suprema reconheceu a repercussão geral do assunto e o catalogou como Tema 1087, em que o órgão colegiado deveria deliberar acerca da “possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri, em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos”.
A conclusão do “leading case” foi no sentido de que, mesmo nesses casos, em que a decisão emanada pelos jurados é sigilosa e imotivada, pois advinda da íntima convicção, é plenamente cabível o questionamento recursal.
Temos que a decisão da Corte, que deu provimento ao recurso e determinou que o recorrido seja submetido a um novo julgamento, é acertada e necessária.
Dentre os conceitos que permeiam a temática, dois deles merecem destaque. Vejamos:
O primeiro deles a abordar é a “Clemência no Contexto Jurídico”.
Clemência, no contexto jurídico, refere-se à disposição de um tribunal ou de um júri em mostrar misericórdia, ou indulgência em relação a um réu, muitas vezes resultando em uma sentença mais branda ou mesmo em absolvição. Embora a clemência possa ser vista como um ato de humanidade e compaixão, ela também pode, em certas circunstâncias, comprometer a justiça, especialmente quando não está fundamentada em evidências concretas.
Com a devida vênia a posicionamentos contrários, tenho que, ao se permitir que uma absolvição, sustentada apenas por clemência ou por motivos subjetivos dos jurados, permaneça intocável é arriscar a instalação do arbítrio no coração do sistema judiciário. A clemência, quando aplicada sem a devida consideração das provas, pode minar a confiança pública no sistema judicial, sugerindo que decisões possam ser influenciadas por fatores emocionais ou pessoais, em vez de serem baseadas em lastro fático-probatório processual.
O Código de Processo Penal (CPP) já estabelece que só haverá anulação do julgamento popular quando a decisão não tiver qualquer respaldo nas provas apresentadas. Portanto, ao afirmar que uma resposta afirmativa ao quesito genérico é indevida, independentemente da identidade da vítima ou do autor do crime, reafirmamos nosso compromisso com uma justiça efetiva e fundamentada.
Outro aspecto que se avulta é a reflexão acerca da garantia do “Duplo Grau de Jurisdição”.
A decisão do STF reforça a importância do duplo grau de jurisdição e da paridade de armas entre as partes no processo penal. Não se trata apenas de garantir direitos; trata-se de assegurar que a verdade dos fatos prevaleça em cada caso.
A revisão das decisões do júri é um mecanismo essencial para evitar injustiças e garantir que o sistema judiciário funcione como um verdadeiro instrumento de equidade.
Por mais óbvio que possa parecer, impende rememorar que a soberania dos veredictos – assim como outras decisões judiciais – não pode ser considerado como um manto que encobre decisões injustas ou desprovidas de fundamentação probatória.
Afinal, é de consenso que a justiça penal deve ser uma via de mão dupla, qual seja: ao mesmo tempo, em que se pune os violadores da lei, protegendo a sociedade, também se exige que a resposta estatal penal seja concretizada mediante a adoção de critérios, sempre permeado por um mínimo de lastro probatório.
Ora, se os jurados decidirem de forma manifestamente contrária às provas apresentadas, qual a razão de se obstar a possibilidade de reanálise dessa decisão?
O direito para o caso concreto não deve surgir exclusivamente da discricionariedade ou das forças intrapsíquicas do julgador, conforme sua vontade e senso de justiça, mas a partir do confronto de argumentos e provas exibidos pelos litigantes. Para tanto, deve-se reconhecer que é direito e dever das partes de contribuírem para a formação do provimento jurisdicional criminal, a fim de que seja justo e legítimo. E, em decisões desprovidas de qualquer motivação razoável, a via recursal não pode ser suprimida.
Admitir que uma absolvição, sustentada apenas por clemência ou por motivos subjetivos dos jurados, possa permanecer intocável é correr o risco de permitir que o arbítrio se instale no coração do sistema judiciário. O Código de Processo Penal (CPP) já estabelece que, nesses casos, somente haverá anulação do julgamento popular quando a decisão não tiver qualquer respaldo nas provas apresentadas.
Ao nosso sentir, a soberania dos veredictos deve coexistir com a responsabilidade e a vigilância sobre as decisões judiciais. Somente assim poderemos construir um sistema jurídico robusto e justo, onde cada voz no tribunal seja ouvida e cada decisão esteja alicerçada, na verdade, dos fatos.
E lembremos sempre: A justiça não é apenas um ideal; é uma prática diária que exige nosso comprometimento contínuo. Este é o caminho para um sistema jurídico que verdadeiramente sirva ao povo e à verdade.
Luiz Eduardo Sant’anna Pinheiro – Promotor de Justiça, com atuação no Tribunal do Júri de Dourados.