Quando o então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, falou pela primeira vez no tal do open health, no fim do governo de Jair Bolsonaro, instaurou-se uma polêmica. A proposta tinha por objetivo o compartilhamento irrestrito de dados entre as redes pública e privada de saúde, e foi criticada por alguns setores devido a preocupações envolvendo privacidade e seleção de risco. A imprensa noticiou que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) já estava embarcando na ideia, mas o Broadcast/Estadão escutou de três funcionários da agência que não é bem assim. O que existe é uma iniciativa que reúne prontuários do SUS e da saúde complementar para que o próprio paciente acesse as informações de forma integrada, o que deve ficar pronto ainda este ano.
“Existe uma política de saúde digital no âmbito macro que estruturou a Rede Nacional de Dados em Saúde (RDNS) com a ideia de criar um grande repositório nacional para os atendimentos do sistema público e da saúde complementar”, afirmou Mauricio Nunes da Silva, diretor da ANS, ao Broadcast/Estadão. A plataforma foi instituída por uma portaria do governo federal de maio de 2020, mas difere do open health por conta da limitação de acesso.
Segundo explicou Celina Maria Ferro de Oliveira, gerente da ANS, as informações ficarão disponíveis no site Meu SUS Digital, e somente o detentor daqueles dados, ou seja, o paciente, poderá manejá-los. O usuário pode escolher, claro, dar acesso aos profissionais de saúde que o acompanham.
“O paciente também pode retirar o acesso. Essa é a lógica a partir da qual a gente vem trabalhando”, disse Oliveira. “Nós já recebemos os dados das operadoras, então falta operacionalizar apenas o envio diário para a RNDS. Estamos alinhando a parte final dos trâmites junto ao Ministério (da Saúde), mas já enviamos alguns dados a título de teste. A nossa expectativa é de que saia este ano ainda”, falou.
Angélica Carvalho, diretora adjunta da agência, afirmou que o objetivo do prontuário único é garantir que o beneficiário tenha todas as suas informações de forma verticalizada. “Também permite que o Estado faça análise epidemiológica”, disse. Além do paciente, apenas os servidores do SUS responsáveis por alimentar o sistema poderão ter acesso aos dados de maneira integral. “Isso não tem relação com qualquer proposta de abertura de informações para contratação (de planos)”, garantiu
A relação com a contratação de planos havia sido uma das preocupações levantadas sobre o open health. Caso as operadoras de saúde tivessem acesso prévio a informações sensíveis dos cidadãos, isso poderia resultar na chamada seleção de risco, quando os convênios decidem não aprovar a adesão de um paciente por conta de idade ou comorbidades, por exemplo.
Portabilidade
Carvalho diz ainda que a ANS chegou a participar de um grupo de trabalho para pensar o open health, mas somente em relação à portabilidade, mecanismo que permite a troca de operadoras sem a necessidade de novos períodos de carência, desde que cumpridos algum requisitos. “Houve a possibilidade de pensar alguns aprimoramentos nessa base da portabilidade para ajudar a fluir, só que esbarramos em questões orçamentárias”, apontou.
Ela observa que a proposta também não foi muito bem recebida pela sociedade por conta do receio de que resultasse em seleção de risco. “Mas a operadora não pode negar portabilidade, ela é obrigada a te receber sem carência inclusive”, disse.
Recentemente, o Broadcast/Estadão noticiou que a Justiça de São Paulo obrigou uma operadora a aceitar a portabilidade de um idoso de 76 anos que figurava como beneficiário de outro plano. Isso porque o juiz entendeu que a idade foi o motivo da recusa. Conforme a ANS, qualquer discriminação, nesses casos, é vedada por lei.
Proposta legislativa
A saúde suplementar no Brasil é objeto de discussões intermináveis e voltou a ficar em foco após o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), dizer que se esforçaria para fazer o PL 7.419/2006, conhecido como “projeto dos planos de saúde”, ser aprovado até o final deste ano. A assessoria do político confirmou à reportagem que a ideia é colocar a proposta na pauta de votação ainda em 2024.
O projeto também faz menção ao chamado prontuário único, mas é menos restritivo em relação ao compartilhamento de dados.
O relator, deputado Duarte JR (PSB-MA), apresentou um substitutivo no qual propõe a existência de uma plataforma digital com informações relativas ao histórico de saúde dos pacientes atendidos em estabelecimentos de saúde públicos e privados. Diferente da RNDS, porém, o texto diz que o tratamento dos dados pessoais sensíveis não precisa do consentimento do titular “quando indispensável para a tutela de saúde”.
A proposta proíbe, entretanto, que as informações sejam utilizadas “para a constatação da existência ou não de doenças e lesões pré-existentes, para fins de estabelecimento de carência, cobertura parcial temporária ou cobrança de agravo”.
Maira Materagia Imperatriz, sócia de Life Sciences & Healthcare do Lefosse Advogados, avalia que, quando se fala em compartilhamento de dados, um dos maiores desafios jurídicos é o vazamento de informações. Ela acredita que essa preocupação é maior do que a seletividade de risco.
“Na hora de fazer contratação, não pode haver discriminação. Se isso for bem regulado, funciona. Acredito que o problema maior são possíveis vazamentos, hackers por exemplo”.
De acordo com ela, hoje em dia há alguns dados que se conversam, mas não se trata de uma base única que dá acesso a diversas informações sensíveis sobre um paciente. Daí o perigo da rede integrada. “O mais sensível é a gente pensar em como impedir vazamento e garantir a segurança para o sistema”, disse.