Bancada evangélica é a principal defensora do PL 1904, que quer colocar a interrupção de gravidez como homicídio simples, mesmo em casos de abuso
O Código Penal Brasileiro prevê que o aborto só é legalizado em três situações, sendo uma delas quando a mulher é vítima de estupro. No entanto, mesmo que seja um direito, muitas dessas pessoas acabam tendo a religião e a vergonha familiar, como empecilhos para ter acesso a esse procedimento legal.
A conselheira tutelar, Raquel Lázaro, relata que durante os atendimentos de crianças e adolescentes vítimas de estupro, já vivenciou situações em que a religião e as famílias tentaram ou impediram essas meninas de ter o atendimento legal. Um dos casos que a conselheira recorda, foi de uma criança de 12 anos, que engravidou de um ente da família, e só descobriu a gestação após passar mal.
A jovem, que na época da gravidez tinha 12 anos e depois fez 13 anos de idade, não tinha relatado à mãe do abuso sofrido, e a responsável também não desconfiava que o estupro tivesse acontecido. Após a menina passar mal e ser levada para uma unidade de saúde, o médico fez diversos exames, que confirmaram a gestação e assim, foi descoberta toda a situação de abuso sexual.
“Foi explicado, foi colocado toda a situação de direito da adolescente perante a legislação brasileira, só que a gente esbarra muito na questão religiosa. Eu não posso entrar muito nesse mérito porque não me compete, mas acabam deixando de obter esse direito por conta da parte religiosa”, expõe a conselheira.
Além da violência já sofrida por crianças e adolescentes, muitas delas são ameaçadas e deixadas fora da sociedade, para evitar que outras pessoas descubram a gravidez fruto de um abuso sexual.
“A maior parte delas tem receio porque entende que é errado e tem medo de contar pra alguém e esse alguém brigar, essa é uma questão. A outra questão é saber que é errado e ser ameaçada caso contar, é a que mais acontece.Então aconteceu (e o abusador diz) ‘se você contar para alguém, você vai ver só, vou bater em você, vou matar sua mãe, vou matar seu irmão, vou matar não sei quem’, e aí a criança, essa adolescente acaba se calando”, exemplifica a profissional, a respeito de casos que atende.
Devido às ameaças, medo e também não conhecer as mudanças de seu corpo, muitas crianças e adolescentes demoram para descobrir a gestação. A conselheira tutelar aponta que a escola e a saúde são setores essenciais, que podem ajudar a evidenciar esses casos de abuso sexual. No entanto, mesmo após descobrir que houve um crime de estupro, muitas famílias não relatam isso, pois se envergonham e preferem esconder a vítima.
“Aí começam outras violações de direito. A família fica com vergonha e vai esconder a criança em casa. Aí a criança fica com vergonha e a culpa é da vítima. A família fica com vergonha e a culpa é da vítima. A vítima nem sempre é encarada como vítima. Ela é encarada mais como a responsável pela situação do que como vítima. Essa é a realidade que a gente pega aqui. São poucas as famílias que a gente vê que realmente dá o suporte. A grande maioria nega, fala que não aconteceu, que isso é mentira”, comenta Raquel.
Essas situações, em alguns casos, podem levar a perigos maiores, como tentativas de suídicio. A assistente social Patrícia Ferreira da Silva e o médico ginecologista obstetra Ricardo dos Santos Gomes, que atuam na equipe do Serviço de Atenção ao Aborto Legal e Violência Sexual do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (HUMAP), relatam que uma adolescente de 15 anos, que tentou tirar a própria vida duas vezes.
“Por duas razões: pela violência sofrida e por estar gestante. Então você falar para ela que ela tem o direito de escolher o que pra ela vai ser menos pior, porque nós não estamos falando do que é melhor, nós estamos falando do que neste momento vai impactar menos a vida dela, porque a marca vai ficar para sempre, ela vai precisar de acompanhamentos, ela vai continuar tendo que trabalhar essas questões emocionais”, relata a assistente social.
DEFENSORES
Boa parte dos defensores da PL 1904, que pretende mudar textos do Código Penal Brasileiro, para equiparar aborto após 22 semanas, mesmo que seja em casos de estupro, como homicídio simples, são ligados à igrejas, principalmente evangélicas.
Em Mato Grosso do Sul, um dos deputados federais que assinam o projeto é Luiz Ovando (PP), que é ligado à igreja evangélica Aliançados, em Campo Grande. Em entrevista ao Correio do Estado, o parlamentar disse que o PL é para evitar a “vulgarização” do aborto. No entanto, esse procedimento já é considerado crime no Brasil, e só é autorizado em três casos: de anencefalia do feto, risco de morte para a mãe e quando a mulher foi vítima de estupro.
Além disso, o deputado também pontuou que a partir das 22 semanas, “já há praticamente todos os órgãos formados, daí para a frente vai haver o amadurecimento” e por isso, ele acredita que deve ser tipificado como crime de homicídio.
No entanto, a equipe médica do HU, que atende vítimas de abuso sexual, informa que esse entendimento de 22 semanas é baseado em algumas normativas não atualizadas do Ministério da Saúde.
Já Rodolfo Nogueira (PL), também informou, através de assessoria, que é a favor do projeto e que seria uma “grande vitória para os conservadores”. Ele também é ligado à igrejas evangélicas no Estado.
Marcos Pollon (PL) não respondeu o Correio do Estado, mas em suas redes sociais, o parlamentar que se descreve como “pró Deus, pró vida e pró armas”, publicou posts a favor do PL 1904.