Debaixo de um limoeiro, uma peça rara aguarda seu destino. É um pedaço das vértebras de um Purussaurus, o maior jacaré que pisou no planeta e viveu na Amazônia há mais de 10 milhões de anos.
Gerimar do Nascimento guardou a relíquia a poucos metros de sua casa, às margens do rio Purus, no sul do Amazonas. Ela estava à mostra num barranco quando foi avistada pelo ribeirinho do seu barco durante um trajeto corriqueiro que percorre sempre quando vai para Boca do Acre, cidade mais próxima.
“Eu vi aquela parte de osso e sabia que não era do nosso tempo”, conta Geri, como é conhecido na região.
No quintal de sua casa, ele acompanha atentamente a explicação de tudo o que a ciência feita na Amazônia já registrou sobre aquela espécie. Quem relata as descobertas científicas é Carlos D’Apólito, professor do Centro de Ciências Biológicas e da Natureza da Universidade Federal do Acre (UFAC), que fez questão de ir até a comunidade resgatar o fóssil e compartilhar o conhecimento.
“São três vértebras articuladas. Não é comum achá-las assim, uma do lado da outra”, diz D’Apólito sob o pé carregado de limão. “Isso pode ajudar a ciência a entender melhor a anatomia da espécie, entender em que parte da coluna vertebral ela estaria”, continua.
“Eu vi aquela parte de osso e sabia que não era do nosso tempo”, conta Geri. — Foto: Nádia Pontes/DW
Dali, a peça será transportada até o Laboratório de Pesquisas Paleontológicas da UFAC, em Rio Branco, será estudada minuciosamente e pode ajudar no avanço do conhecimento. O nome de Geri agora vai aparecer junto com aquela parte do Purussaurus. Esse é um dos raros casos em que a identidade de quem localizou um fóssil é conhecida e documentada, diz o pesquisador.
“Existe uma parcela do trabalho de campo que acaba sendo feito por pessoas que não são formalmente paleontólogos, que ficam como invisíveis, e que, às vezes, não aparecem nem nos agradecimentos”, afirma D’Apólito.
Feliz com o reconhecimento e especialista na navegação daquele trecho do Purus, Geri diz ter certeza de que há mais para ser revelado de onde ele retirou aquelas vértebras.
Fósseis nas barrancas
Perto do local, um grupo de sete pesquisadores concentra as buscas por vestígios de vidas passadas. Eles fazem parte da expedição liderada por D’Apólito e se surpreendem a cada remexida na terra.
A temporada seca na Amazônia é a época em que os paleontólogos deixam os laboratórios e saem para a coleta com boas chances de localizarem fósseis nas margens expostas. O nível do Purus nesta temporada está bem abaixo da média, dizem os barqueiros que transportavam a equipe durante os três dias de campo.
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Outras partes do jacaré gigante estão por ali: vértebras isoladas, crânio, dentes. A espécie, chamada de Purussaurus brasiliensis, o “réptil brasileiro do rio Purus”, foi batizada pelo botânico João Barbosa Rodrigues, em 1892. Ele fez a descrição a partir de um pedaço de mandíbula encontrado nas barrancas, mas, até hoje, não se sabe bem em que circunstâncias o fóssil foi encontrado e sua localidade exata.
Crânio inédito encontrado às margens do Purus. — Foto: Nádia Pontes/DW
Os pesquisadores desta expedição sabem bem onde estão. As buscas acontecem perto de uma faixa de terra reivindicada pelo povo Apurinã. Acostumados a ver fósseis ali quando o rio baixa, os indígenas acreditam que são ossadas antigas despejadas por uma cobra gigante que devora animais e que se esconde no Purus.
Sentado no barranco, Edson Guilherme, professor da UFAC, se espanta com o que acaba de desenterrar. É o crânio de uma tartaruga com duas órbitas oculares, narina e mandíbula associada – uma espécie ainda desconhecida da ciência. “Somos os primeiros seres humanos a ver o crânio desta espécie no mundo. Isso é emocionante”, diz Guilherme, embalando o fóssil com cuidado para que resista ao transporte.
Camila Inara Silva, aluna de mestrado da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), é a estreante da turma. As aulas em campo com os mais experientes fazem ela ter certeza de que a paleontologia é o caminho que quer seguir.
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O veterano Alceu Ranzi também se impressiona com o crânio inédito encontrado. Aposentado depois de atuar mais de trinta anos na UFAC, ele acompanha o grupo que reúne várias gerações de paleontólogos dedicados a decifrar as espécies extintas e soterradas debaixo da Floresta Amazônica.
O local onde Ranzi caminha é um afloramento de uma deposição do Mioceno, período geológico que a Terra viveu entre 23 milhões e 5 milhões de anos atrás. O planeta estava mais quente e esta região amazônica era um grande pantanal, com lagos imensos que abrigavam Purussaurus e outros gigantes.
Com fragmentos fósseis na mão, Ranzi imagina o cenário em que esses animais conviviam – ou competiam. “Estamos caminhando no fundo de um grande lago. Aqui tinha uma fauna riquíssima: jacarés, tartarugas, preguiças, roedores, todos gigantes”, diz Ranzi.
No Mioceno, os dinossauros tinham sido extintos há cerca de 40 milhões de anos. Os seres humanos ainda não existiam. Os crocodilos, que dividiram o terreno com os dinossauros e são parentes do Purussaurus, se adaptaram e sobreviveram, assim como os grandes mamíferos. A Floresta Amazônica exuberante, possivelmente, ainda não existia.
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“Quando esta água dos grandes lagos drenou e os rios se formaram, se encaminharam descendo dos Andes até o Atlântico, esta área perdeu a umidade e a floresta cobriu tudo. Só ficou o caminho dos rios atuais”, explica Ranzi.
Ele segura agora parte do fêmur de uma preguiça gigante. Ela pesava várias toneladas, caminhava pelo chão e era herbívora. Diversas espécies desses animais terrícolas gigantes existiram por milhões de anos, inclusive na época do Purussaurus.
“Ela possivelmente veio tomar água neste lago e um Purussaurus estava à espreita e a devorou. É por isso que aparecem fossilizadas dentro de um lago – porque esse não é o ambiente delas. Elas foram trazidas ou predadas aqui”, imagina Ranzi.
“Uau”
De todas as preguiças conhecidas, a Eremotherium laurillardi foi a maior. Ela pesava cerca de cinco toneladas e media aproximadamente seis metros de comprimento. Em pé, alcançava quase cinco metros de altura. Essa espécie viveu num período mais “recente” da história da Terra, entre 2,6 milhões e 10 mil anos atrás.
São partes desse animal que D’Apólito recebe em caixas de papelão em Boca do Acre durante a expedição. Elas foram localizadas por um casal de idosos na comunidade de Maracaju 2, a cinco horas de barco da cidade na época seca. Eles encaminharam os fósseis para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que guardou as peças até a chegada dos pesquisadores.
Fóssil de preguiça gigante foi encontrado por casal ribeirinho. — Foto: Nádia Pontes/DW
A tíbia bem conservada da Eremotherium laurillardi impressiona e intriga os moradores da cidade que assistem à cena da entrega às margens do Purus. D’Apólito explica à plateia curiosa que aquela preguiça gigante andou por ali e chegou a conviver com seres humanos. A reação em coro é: “Uau”.
Desta vez, o pesquisador não consegue visitar os coletores desses fragmentos devido à distância, mas responde à curiosidade dos ribeirinhos. “É uma preguiça que estava aqui por volta de 20, 15, 10 mil anos atrás. E eles eram grandes, muito grandes. Muito obrigado pelos fósseis, pela coleta, nós recebemos o material”, diz a mensagem de voz enviada ao casal ribeirinho.
Passado esclarecido para entender o futuro
Foram doações como essa que iniciaram a coleção que o laboratório da UFAC mantém desde meados dos anos de 1970. Muitas das atuais 10 mil peças foram recebidas por Jonas Pereira de Souza Filho, paleontólogo aposentado e ex-reitor da universidade.
Aluno de Ranzi, Souza Filho fez seu primeiro trabalho de campo em 1986 na fronteira com o Peru e teve uma grande estreia: encontrou o crânio de Purussaurus mais completo que se conhecia. O fóssil, hoje exposto no museu da universidade, foi retirado com ajuda das marteladas de Marinho, como o grupo chamava o barqueiro local que guiava a expedição.
“Até então, os fósseis na Amazônia eram explorados apenas por pessoas que vinham de fora, levavam as peças e não deixavam registros no local. Nós começamos a colocar a paleontologia da Amazônia no mapa do Brasil e do mundo”, avalia o acreano Souza Filho, lembrando o trabalho pioneiro do professor Ranzi.
Alceu Ranzi atuou mais de 30 anos na Ufac. — Foto: Nádia Pontes/DW
Na ânsia de decifrar a história da vida na Amazônia, os pesquisadores também conseguem compreender melhor o presente e até projetar o futuro. A ciência mostra, por exemplo, que mudanças climáticas ocorreram antes da presença do homem no planeta, mas nada se compara ao que tem acontecido na Terra desde a era industrial. A temperatura média global subiu 1,4°C nos últimos 200 anos e o clima está se alterando rápido demais.
“Não dá tempo de a natureza acompanhar a evolução e ir se adaptando. Aconteceu algo no tempo dos dinossauros tão grave que eles não conseguiram se adaptar. A mudança hoje é tão grande que tudo está sucumbindo. O perigo é de levar à extinção, e não à adaptação. E o que foi extinto não retorna mais”, pontua Ranzi.
Em sua comunidade às margens do Purus, Geri se preocupa ao ver o rio tão seco, o calor excessivo e a fumaça constante das queimadas. Ele diz que a descoberta do fóssil do Purussaurus reacendeu nele o antigo desejo de estudar para entender como este passado se relaciona com o momento atual.
“É um sonho. Preciso fazer uma faculdade para me especializar na área. Terminei o ensino médio com mais de 30 anos e me sentia velho para fazer uma faculdade. Mas esse encontro fez eu voltar a ter esperanças”, diz à DW.
*Esta reportagem faz parte de um projeto de divulgação científica apoiado pelo Instituto Serrapilheira
Fonte: g1/ML