Era uma vez um rio imenso, largo e abundante. Um ponto de encontro de diversas gerações para pesca ou lazer. Mas essa imagem do que já foi do Rio Miranda, um dos principais cursos de água de Mato Grosso do Sul, só está viva na memória de alguns.
“Escuto histórias do meu pai sobre o Rio Miranda. Ele conta que era fundo. Eu só conheço ele assim, seco. Todas as vezes que descemos para recolher lixo nas margens, encontramos de tudo. É horrível. O pior são as roupas e tênis. Falta conscientização das pessoas”, lamenta a pequena Júlia Ester da Silva Soares, 12 anos.
Ela era uma das crianças do IGMA (Instituto Guarda Mirim Ambiental) que desceram nos caiaques da expedição técnica de proteção do Rio Miranda, nesta quinta-feira (5), em Jardim, a 234 km da Capital.
Junto com as crianças que caçavam lixos e os colocava em sacos, estavam pesquisadores e representantes de diferentes instituições que participaram da ação de análise in loco da nascente do rio.
O Campo Grande News participou da ação que começou na Praia da Marli. O lugar usado pela população para tomar banho e se refrescar tinha cerca de seis metros de profundidade, mas o que todos encontraram ao chegar no local foi um barranco imenso e uma fina lâmina de água, que se tornou comum durante todo o percurso do rio.
Nos primeiros metros, um dos participantes da expedição resumiu o sentimento de tristeza de todos. “Dá vontade de chorar”, murmurou. Bancos de areias tomaram o fundo do Rio Miranda. O pensamento era apenas um: ‘estamos perdendo o rio’.
Durante toda a descida do grupo era possível andar no meio da água a pé, molhando apenas a perna até a altura do joelho. Caiaques e barcos encalharam durante todo o trajeto, de tão raso que o curso da água estava.
O biólogo do IHP (Instituto Homem Pantaneiro), Sérgio Barreto, explicou sobre o monitoramento do Rio Miranda da nascente até a foz. “Algo precisa ser feito. Temos problemas graves aqui na área de nascente. Isso contribui para o processo de assoreamento e erosivos”, ressaltou.
“Em 70 km na região de nascente do Rio Miranda, já foram identificados 53 hectares com passivos ambientais. Ações de mitigação são realizadas apenas pelo IGMA, com plantios de árvores nas cabeceiras mais comprometidas”.
Também cabe ressaltar o apoio do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) nas ações de preservação e combate aos passivos ambientais. O titular da 2ª Promotoria de Justiça de Jardim, Allan Carlos Cobacho do Prado, tem tomado decisões em defesa do Rio Miranda. Ele solicitou que o grupo de pesquisadores apresentem, nos próximos 60 dias, um estudo técnico para deliberar novas medidas no município.
“A importância da expedição é demonstrar realmente que um rio tão importante como esse, o rio Miranda, está secando. Além da falta de chuva, também tem muitas problemáticas de nascentes, de APPs (Áreas de Proteção Permanente), que deve se mostrar uma força-tarefa tanto do poder Executivo, do Ministério Público, dos órgãos de proteção ambiental pra recuperar o mais rápido possível esse rio. Toda a propriedade que está irregular, nós abrimos um inquérito civil, uma investigação e a gente vai cobrar individualmente desse proprietário”, reforçou o promotor.
Outro defensor do Rio Miranda e que estava presente na expedição é Eduardo Coelho. Ele é presidente do Iasb (Instituto das Águas da Serra da Bodoquena) e presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Miranda.
Ele reforçou que o rio está pedindo socorro. “Objetivo dessa expedição é sensibilizar a sociedade de que precisamos juntos, unidos, reverter esse quadro. É muito importante que o rio tenha qualidade de água e biodiversidade. Esse rio é um dos mais piscosos do Brasil. Mas hoje em função do assoreamento e da pouca quantidade de água no rio, que vem há anos nessa situação, eu acho que os peixes estão tendo muita dificuldade de fazer piracema. Então tá diminuindo muito a quantidade de peixes na região que é um ativo ambiental muito importante que dá a sustentabilidade para muita gente, inclusive para o ecoturismo”.
Para um casal de idosos que estava embaixo da ponte velha, em Jardim, o rio está ‘acabado’. “É uma tristeza. O rio tá muito seco. Antigamente não era assim. Está difícil demais (pescar) peixe”, disse seu Feliz Ramão Gavilam, 74 anos. Ele e a esposa, Ivanilda Celestino Teixeira, 62 anos, frequentam o mesmo ponto há 40 anos. Antes eles ficavam no barranco do rio, mas com a estiagem, um banco de areia se formou na beira.
“Cada vez mais o rio está sumindo. Antes nós pescávamos 40 peixes por dia. Hoje, se pegar quatro, é muito. O rio está morrendo muito rápido. Nesses últimos anos estamos percebendo o aumento das lavouras e o povo desmatando muito. Isso desanima todo mundo a vir pescar e não tem mais lucro. Hoje só conseguimos pescar para comer e só dá curimba”, disse ela.
De baixo da mesma ponte também estava o pai da Júlia, do começo da reportagem. Nisroque da Silva Soares, é o diretor do Instituto Guarda Mirim Ambiental e presidente do Condema (Conselho Municipal de Meio Ambiente) de Jardim. Ele relembra que o Rio Miranda era navegável e tão fundo a ponto de pessoas pularem da ponte até o rio, mas que hoje, os barcos precisam ser arrastados no curso da água. “Isso é resultado de um ataque que Rio Miranda sofreu com a retirada das matas ciliares”.
Vale ressaltar que o Rio Miranda é fonte da captação de água para abastecimento de Jardim. De acordo com o Sanesul (Empresa de Saneamento Básico de Mato Grosso do Sul), há 13 pontos de monitoramento diário nas bacias do Estado.
“O Rio Miranda, na data de ontem, apresentava nível de 108 cm, considerada em estado de estiagem. Este nível é considerado fora de faixa de normalidade para o período”, ressaltou Elthon Teixeira, gerente de Desenvolvimento Operacional da Sanesul.
Repetir o Taquari? – Em todo o momento, o grupo de pesquisadores repetiam que não queriam repetir as cenas do Rio Taquari com o Rio Miranda. Tentando identificar os problemas e encontrar as soluções para virar o jogo, deve ser prioridade dos envolvidos nas próximas semanas.
“Nós já temos um exemplo vivo no Estado que é o Rio Taquari. Observar o Rio Miranda nessas condições é bastante preocupante. Em todo o percurso vimos um rio bastante instável, com processo de queda de barreira. A margem do rio tem um processo erosivo e de sedimentação. Isso está se intensificando muito, porque a nossa formação rochosa que nós temos aqui é sedimentar. Ou seja a presença de areia é muito grande. Então ela é muito fácil de se soltar”, explica a professora de Geografia da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), Cristiane Dambrós.
O esforço coletivo para encontrar soluções a curto, médio e longo prazo visam a restauração do Rio Miranda, antes que ele seque completamente e mude seu percurso natural.
“O leito do rio, a parte de vasão principal, ela se muda de lugar e essa mudança é natural, mas isso levaria algumas centenas de milhares de anos. Agora a gente está vendo isso acontecer anualmente, com o aumento desses acúmulos de areia no percurso. A gente usou um caiaque que flutua sobre a água e a gente encalhou nos bancos de areia. Isso demonstra o quanto o rio está com uma lâmina de água muito reduzida. Essa redução compromete a biodiversidade aquática. A gente tem uma diminuição de número de espécies de peixe. A gente tem uma diminuição de outros animais que compõem um contexto local. E isso tudo vai comprometer também a fragilização desses ambientes”, ressaltou.
O primeiro objetivo é estabilizar os processos erosivos e de sedimentação. A especialista afirma que não tem como acabar com o fenômeno, mas contar com a compreensão de todos para fazer um esforço coletivo de conservação e precaução. Isso vai incluir, também, mudança nas regras de uso do solo.
Professora de Geografia da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), Cristiane Dambrós (Foto: Paulo Francis)
“A legislação está permissiva. Ela tem um padrão nacional, só que para nossa realidade ela não está cabendo mais. Ela precisa ter algumas restrições e as pessoas que vivem da terra também precisam compreender que a natureza é que condiciona a nossa produção”.
Participaram da expedição o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Miranda, Instituto Homem Pantaneiro, Instituto Guarda Mirim Ambiental de Jardim, Instituto das Águas da Serra da Bodoquena, Ministério Público Estadual com a Promotoria de Jardim, Polícia Militar Ambiental, Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Exército Brasileiro (4ª Companhia de Engenharia de Combate Mecanizada).
Fonte: CGN/ML