Servidores do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) vêm engrossando a pressão para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vete trechos do Projeto de Lei (PL) 1.559/2022, o chamado “PL do Veneno”, que flexibiliza as regras sobre o uso de agrotóxicos no país, às vésperas do fim do prazo para que a nova lei seja sancionada.
A Repórter Brasil apurou que técnicos do órgão ambiental federal elaboraram uma lista com recomendação de vetos a trechos do PL aprovado pelo Senado no dia 28 de novembro. O documento, acessado com exclusividade pela reportagem, já foi remetido ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) para encaminhamento à Presidência da República. O MMA endossa o documento.
O relatório aponta “retrocessos”, “inconstitucionalidades” e lista seis “vetos essenciais” sobre o texto que está nas mãos do governo. Lula terá até o dia 27 para decidir sobre o assunto. A Presidência tem a prerrogativa de cortar ou não artigos do texto, mas não está habilitada a modificar a redação. Em caso de vetos, o Congresso pode realizar uma nova votação para tentar restabelecer o conteúdo suprimido.
A Repórter Brasil procurou o Ministério do Meio Ambiente e a Casa Civil da Presidência da República para comentar o teor do documento elaborado pela área técnica do Ibama. Por meio de sua assessoria, o MMA declarou que aprova as propostas de veto e que elas serão encaminhadas ao Palácio do Planalto.
“O MMA endossa a posição apresentada pelo Ibama e prepara hoje uma nota técnica neste sentido”, declarou o ministério.
A Casa Civil informou que pediu a análise dos órgãos envolvidos no tema, o que também inclui a Advocacia-Geral da União (União). “A Casa Civil da Presidência encaminhou o Projeto de Lei 1459/2022 para manifestação dos órgãos envolvidos e aguarda retorno”, informou.
Quais são os vetos propostos pelo Ibama?
Redução das competências
O principal pleito do Ibama é a manutenção dos critérios técnicos e científicos que embasam a liberação e fiscalização dos venenos. O texto aprovado no Senado retira do órgão ambiental federal e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a função de analisar impactos à saúde e ao meio ambiente, em casos de agrotóxicos já registrados que venham a sofrer algum tipo de alteração em sua composição química – situação bastante comum no setor. Ao pedir o veto deste trecho (artigo 27º), o Ibama se justifica no documento: “O resultado disso é que o risco da avaliação ambiental se torna uma mera formalidade.”
O órgão ambiental explica que, da forma como o texto está hoje, quaisquer modificações que venham a ocorrer nas características essenciais de um agrotóxico já registrado – situação que pode, inclusive, torná-lo mais tóxico do que originalmente – passam a ser atribuição exclusiva do Ministério da Agricultura (Mapa). Isso significa que a Anvisa e o Ibama deixam de ser ouvidos nessas situações.
“As alterações podem impactar diretamente no perfil ecotoxicológico e toxicológico do agrotóxico, inclusive com a presença de novas impurezas que podem torná-lo mais tóxico do que quando registrado inicialmente”, afirma o órgão ambiental, apontando ainda que a mudança afronta a Constituição Federal. “Trata-se de flagrante retrocesso socioambiental, uma vez que hoje esse tipo de avaliação é realizado de forma conjunta.”
Análises complementares
O texto aprovado pelo Congresso prevê ainda que as reavaliações de agrotóxicos pelo Ibama e a Anvisa sejam apenas complementares (artigo 28º) à análise do Mapa. Em outras palavras, caberá ao Ministério da Agricultura, a seu critério, requerer ou não essas informações.
O Ibama alerta que essas reavaliações conduzidas pela Anvisa e Ibama “são pautadas em robusta base técnico-científica”, por se tratar de “processos investigativos sobre efeitos adversos à saúde e/ou meio ambiente”. Por isso, diz o Ibama, estes órgãos “não podem ser rebaixados à condição de mero complemento da análise do órgão de Agricultura”.
Como exemplo das exigências desta análise técnica, o Ibama lembra que, pelas regras atuais, o coordenador desse processo é definido conforme o tipo de reavaliação de produto, ou seja, pelas “atividades finalísticas de cada autoridade participante do registro” de cada agrotóxico. “O órgão de Agricultura não detém o saber e competência institucional para atuar nesses temas”, afirma o relatório do órgão ambiental.
Substituição de produtos
O Ibama também requer a derrubada de uma regra que condiciona ao Mapa a adoção das medidas de segurança..
Segundo o artigo 31 do texto aprovado no Senado, se for constatado que um produto causa potenciais danos ao meio ambiente ou à saúde humana, sua restrição, suspensão, cancelamento ou proibição somente poderá ser efetivada caso existam outros “produtos substitutos”, elencados pelo Ministério da Agricultura.
“Com isso, medidas necessárias ao bem estar humano e equilíbrio ecológico ficam condicionadas à ação do órgão registrante (Mapa)”, afirma o Ibama, que classifica a regra como “retrocesso socioambiental com ofensa ao direito à vida saudável e ao equilíbrio ambiental”.
Controle de embalagens de agrotóxicos
No que diz respeito a embalagens de agrotóxicos, o texto aprovado no Congresso (artigo 41º) dispensa a necessidade de o fabricante gravar informações de modo indelével, ou seja, com rótulos em relevo, impossíveis de serem removidos sem danificações.
A nova regra dispensa a necessidade deste tipo de tratamento visual em relação ao nome da empresa titular do registro, além de não tornar obrigatória a advertência sobre o não reaproveitamento das embalagens, medida básica de saúde e segurança.
O artigo, alerta o Ibama no documento, dificulta a responsabilização das empresas que façam a destinação inadequada das embalagens de agrotóxicos. “Retroceder no controle de embalagens desses produtos, facilitando a remoção da inscrição da empresa titular e a sua indevida reutilização, constitui retrocesso socioambiental e maior risco à saúde e ao meio ambiente. Vai de encontro à prática de controle de embalagens de agrotóxicos no Brasil há mais de 30 anos”, afirma a autoridade ambiental.
Produtos cancerígenos
Até hoje, os agrotóxicos e seus componentes só podem ser produzidos, comercializados e utilizados, se previamente registrados conforme as diretrizes e exigências dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura.
A nova lei (artigo 4º) altera esse entendimento e diz que, agora, serão proibidos apenas os produtos que apresentarem um “risco inaceitável”, abrindo espaço para um tipo de tolerância ao risco. Ocorre que não há clareza sobre os critérios para embasar essa decisão.
“É relevante e urgente garantir que os filtros de proibição vigentes sejam mantidos. O filtro escolhido é vago e insuficiente. O Brasil não pode ser caminho livre para substâncias banidas em outros países”, alerta o Ibama.
O órgão federal destaca que não é aceitável o registro de um agrotóxico que tenha maior ação tóxica sobre o ser humano e o meio ambiente do que aqueles que já foram registrados para o mesmo fim.
“De igual maneira, não é razoável admitir o registro no Brasil de agrotóxicos para os quais o país não dispõe de métodos de desativação, não haja antídoto ou tratamento eficaz”, diz o relatório do órgão federal. “A ciência indica não existir risco aceitável ao câncer. Segundo a Fiocruz, não há uma relação de dose resposta para produtos cancerígenos. Pequenas doses podem gerar danos irreversíveis à saúde das pessoas.”
Saldão do registro
A nova lei cria uma taxa única para o registro de agrotóxicos, ao contrário do que ocorre atualmente. Segundo o Ibama, no entanto, não há um estudo sobre as estimativas de receitas que serão geradas por essa nova taxa.. Paralelamente, o texto (artigo 66º) revoga uma série de regras relativas às taxas ambientais que já estão envolvidas com esse processo.
Na avaliação dos técnicos do órgão ambiental, essa mudança contraria o interesse público, ao incentivar o registro de produtos potencialmente danosos à saúde e ao meio ambiente, devido à potencial “renúncia de receitas auferidas dos serviços ambientais”.
PL já foi rechaçado por mais de 20 manifestos científicos
Apesar das indicações de vetos, não há sinalização de que Lula deverá acatar as sugestões. Como mostrou a Repórter Brasil, o texto aprovado no Senado contou com o apoio da base do governo, após negociações com a bancada ruralista realizadas ainda durante a transição de governo, no fim do ano passado, e a aprovação da PEC do reequilíbrio fiscal, neste ano.
O projeto original já recebeu mais de 20 manifestações contrárias da comunidade científica, entre elas o Instituto Nacional do Câncer, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, além da Anvisa e Ibama.
Desde que o senado aprovou a lei, diversas organizações pediram o veto do presidente. Um deles foi o manifesto entregue ao presidente durante a COP, assinado por Greenpeace, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, e o Observatório do Clima, entre outros.
Só nesta terça-feira (12), o Ministério da Agricultura publicou a aprovação para comercializar 18 novos agrotóxicos no país.