Sem regras ambientais eficazes, bancos públicos e privados financiam empresas envolvidas na atividade que mais desmata a Amazônia: a pecuária.
Essa é a conclusão do novo estudo do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) “Financiamento da cadeia da carne: instrumentos regulatórios e o meio ambiente”, lançado na segunda-feira (11) em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, durante a conferência do clima da ONU (COP-28).
A pesquisa alerta para a necessidade de o sistema financeiro se comprometer com medidas em prol do meio ambiente na concessão de créditos à cadeia da carne, seja em negócios com pecuaristas, frigoríficos ou varejistas.
“Falamos muito sobre (os impactos ambientais das) empresas pecuaristas, mas olhamos pouco para as instituições financeiras”, afirma Julia Catão Dias, especialista do programa Consumo Sustentável do Idec.
Ela explica que as normas atuais do Banco Central (Bacen) determinam a verificação do perfil ambiental dos clientes apenas antes da concessão do crédito. No entanto, é fundamental monitorar também a aplicação dos recursos e os impactos das atividades financiadas.
“O que nos preocupa é a falta de obrigatoriedade de os bancos acompanharem os contratos e saberem onde estão colocando o dinheiro”, destaca Dias.
Pecuária emite 74% dos gases
As emissões de gases de efeito estufa pelo setor agropecuário chegaram a 601 milhões de toneladas de CO2 em 2021, o maior índice desde 2004. Só a participação da pecuária cresceu 182% desde 1970, segundo o Observatório do Clima. A atividade responde por 74% de toda a poluição climática no país.
Um dos principais gargalos do setor é a falta de rastreabilidade dos animais. A Repórter Brasil já publicou várias reportagens mostrando como bois criados ilegalmente em áreas embargadas são enviados para fazendas regularizadas e, depois, remetidos a grandes frigoríficos, chegando até as prateleiras dos supermercados.
Ao investir em um setor sem um sistema eficaz de controle de fornecedores, as instituições financeiras assumem o risco de causar danos ambientais, opina Merel van der Mark, coordenadora da plataforma Forests and Finance (Florestas & Finanças, em português). “Os bancos não podem dizer que não estão financiando o desmatamento. No fundo, eles não sabem se estão ou não”, diz.
A adoção de medidas é cada vez mais urgente, tendo em vista que a pecuária continua em expansão no país.
A capacidade de abate instalada dos frigoríficos registrados nos sistemas de inspeção federal (SIF) e estadual (SIE) aumentou 5% em 2022 na comparação com 2016. Foram abatidos 65 mil animais por dia no ano passado, ou 23,7 milhões ao todo, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Sem a rastreabilidade, a instituição calcula que mais de 3 milhões de hectares de florestas na Amazônia estão sob risco de desmatamento até 2025. “Tem um ecossistema de negócio com desmatamento. É o fazendeiro, o frigorífico, o banco, o agente público, o agente privado, o fundo de pensão. É todo mundo fechado com desmatamento de várias formas”, diz Paulo Barreto, pesquisador do Imazon.
Ele ressalta que, ao fornecerem créditos sem critérios rigorosos de sustentabilidade na pecuária, os bancos toleram o desmatamento e, consequentemente, podem agravar a crise climática no país.
Bancos e o risco ambiental
Os bancos brasileiros são os que mais financiam empresas de mercadorias com risco de causar desmatamento, segundo relatório do Florestas & Finanças divulgado no início do mês.
Segundo o levantamento – que considera os investimentos feitos desde a assinatura do Acordo de Paris (2015) –, foram destinados 127 bilhões de dólares no Brasil para empresas agropecuárias com histórico de violações socioambientais, entre janeiro de 2016 e setembro de 2023.
Os dados incluem créditos para produção de carne bovina, soja, óleo de palma, celulose e papel, borracha e madeira. Só a pecuária recebeu 54% do crédito.
Segundo o relatório, Banco do Brasil, Bradesco e Itaú lideram o ranking de investimentos em empresas com risco ambiental.
“Os bancos não vão adotar as medidas necessárias voluntariamente. Precisamos de regulações fortes do Banco Central”, diz Merel van der Mark, coordenadora do Florestas & Finanças.
“O Banco do Brasil é, de longe, o banco que mais fornece crédito a empresas com risco de desmatamento”, comenta Merel, ressaltando que o banco público é o que mais oferta crédito rural no país.
Em nota, o Banco do Brasil informou que sua política de crédito observa critérios socioambientais, mas não apontou de que forma o monitoramento é realizado pela instituição. O banco disse ainda que exige dos clientes a apresentação de documentos que comprovem a regularidade socioambiental dos empreendimentos e que antecipa o vencimento do contrato quando há violações socioambientais.
Procurado, o Bradesco disse que não iria se manifestar. O Itaú não respondeu.
Medidas ineficazes
O Banco Central e a Febraban lançaram este ano novas regras em prol de negócios sustentáveis no agronegócio. As medidas, contudo, são consideradas ineficazes pelos especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
Em junho, o Banco Central publicou uma nova regra que impede a concessão de crédito para áreas embargadas pelo Ibama por desmatamento. A medida já valia para a Amazônia, mas, a partir de janeiro, terá aplicação em todo país.
A norma também veda o acesso ao crédito rural para proprietários de imóveis sem inscrição no CAR (Cadastro Ambiental Rural), inseridos em área de Unidade de Conservação ou Terras Indígenas.
O estudo do Idec considera a nova regulação um avanço, no entanto, ressalta que essas regras não impediram o crescimento da pecuária predatória na Amazônia nos últimos anos.
O documento defende a adoção de outros mecanismos que seriam mais eficientes no combate às práticas antiambientais. Uma sugestão para os bancos seria utilizar o sistema Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite) para verificar eventuais desmatamentos ilegais recentes, que geralmente ocorrem em áreas onde os órgãos ambientais ainda não chegaram.
“Os bancos podem verificar a data em que ocorreu o desmatamento e, sendo recente, pode solicitar que o cliente apresente a autorização para supressão de vegetação. Se o cliente não apresentar o documento, o desmatamento é ilegal, ou seja, não é necessário esperar a área ser embargada para concluir isso”, aponta a pesquisadora Flávia Vieira do Amaral, da Universidade Federal do Pará (UFPA), e responsável pelo estudo do Idec.
Outras medidas adotadas pelo sistema financeiro em 2023 também são apontadas como ineficazes pelo estudo, como o novo Manual de Crédito Rural do Bacendivulgado em novembro, e a proposta de autorregulação da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). Ambas não incluem cláusulas de monitoramento dos contratos, consideradas cruciais pelos especialistas.
“Sem o acompanhamento periódico, não há controle sobre como os recursos são investidos, de modo que os bancos podem se envolver em atividades que estejam violando as salvaguardas ambientais e climáticas”, diz Vieira, da UFPA.
No caso da proposta da Febraban, os especialistas criticam ainda o fato de a instituição dar prazo até 2025 para que os frigoríficos comprovem a rastreabilidade da carne.
“Os bancos, como especialistas em gestão de risco, poderiam ter ações diferentes em cada território conforme a localização desse risco. Eles não deviam dar mais crédito aos atores ligados ao desmatamento ilegal. E não precisam esperar 2025 para tomar medidas”, afirma Barreto, do Imazon.
Em nota a Febraban informou que, além de observar o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e as resoluções do Banco Central, as instituições financeiras estabelecem protocolos para a gestão dos riscos de desmatamento ilegal e critérios para a concessão de crédito. De acordo com a representante do setor financeiro, o normativo da autorregulação prevê cláusulas contratuais para operações com maior exposição a risco socioambiental, porém ainda não houve sinalização sobre o acompanhamento desses clientes após a concessão dos empréstimos.
Procurado, o Banco Central não se manifestou.