A morte de nove pessoas em um acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Parauapebas (PA), no último dia 9, chamou atenção para a situação de risco enfrentada por acampados e pré-assentados no país. As políticas de reforma agrária caminham a passos lentos há dez anos, e pouco mudou no atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O número de áreas adquiridas pela União para a criação de novos assentamentos vai terminar zerado pelo terceiro ano consecutivo – acompanhando o movimento iniciado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2021.
Cerca de 65 mil famílias vivem hoje em acampamentos, segundo fontes do movimento, e outras 30 mil estão em pré-assentamentos – onde os processos não foram concluídos e, por isso, os agricultores não têm acesso a créditos nem a outras políticas do programa de reforma agrária.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) joga a conta da paralisia da atual gestão na herança deixada pelo governo anterior. ”Neste ano, não houve compra de terras para destinação ao Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Em função do orçamento exíguo herdado do governo anterior, estão sendo empreendidos esforços no sentido de mapear terras devolutas e direcioná-las ao programa”, diz o órgão, via assessoria de imprensa.
O orçamento deste ano, de R$ 256 milhões, foi o menor dos últimos 20 anos, segundo dados do Incra. O valor previsto para 2024 é de R$ 567 milhõesde acordo com a primeira versão da lei orçamentária do próximo ano, que deve ser votada ainda nesta semana no Congresso.
”O diálogo (com o governo) é uma beleza, mas não passa disso”, afirmaJoão Paulo Rodrigues, coordenador do MST. “O governo é democrático, de participação, explica o problema e traz para nós a situação. Mas a questão é a seguinte: como eu saio de R$250 milhões e chego a pelo menos R$ 1 bilhão para o Incra?”, questiona.
Além do orçamento abaixo do necessário, outros fatores dificultam o processo, como o fato de o Incra carecer de servidores e estrutura.
”A Superintendência aqui já teve mais de 200 servidores e hoje temos cerca de 50. Não tem gente para poder fazer revisão, não tem vistoria nos lotes, não tem dinheiro para poder ir lá. É uma situação caótica. O último concurso foi em 2012 e foi sucateando de lá para cá, o pessoal foi saindo”, diz o superintendente regional do Incra em Marabá (PA), Reginaldo Rocha de Negreiros, em entrevista concedida antes do trágico incêndio ocorrido no sudeste do Pará, durante a instalação de uma antena de internet. A regional é responsável por Parauapebas.
Na região, há territórios que esperam o andamento do processo de regularização desde o governo Dilma Rousseff (PT), encerrado há quase oito anos.
É o caso do Projeto de Assentamento Marajaí dos Carajás. A área está localizada nos municípios de Sapucaia, Xinguara e Curionópolis. Ela foi reconhecida em portaria de 2016, após o acampamento ser erguido em 2010, mas não passou disso.
Antônio Reis da Silva, 59, presidente de uma das associações do Assentamento Marajaí dos Carajás, conta que os agricultores, sem as políticas de reforma agrária, se viram como podem nos últimos 13 anos. Ergueram casas e instalaram serviços de internet e luz por conta própria. A única ajuda vinda por meio do poder público, diz ele, foi um trator comprado via emenda parlamentar de um vereador local.
“Essas trocas de governo sempre prejudicam os pequenos da agricultura familiar, que querem sobreviver trabalhando dos braços”, conta.
Para o advogado José Batista, da CPT (Comissão Pastoral da Terra) no Pará, ainda não está claro qual vai ser a prioridade do Incra nos próximos anos. ”Não tem um projeto. O que tem são discursos do ministro, do presidente do Incra, da cúpula do governo, mas não tem um programa divulgado das metas, das políticas que serão priorizadas”, avalia.
Assentados em queda, titulação em alta
Nesse cenário, o governo Lula vai fechar seu primeiro ano de gestão com índices próximos aos da gestão Bolsonaro. Segundo o Incra, foram criados dez assentamentos neste ano, em áreas que já haviam sido adquiridas pelo governo federal. Isso representa metade da meta para 2023, com base em um balanço dos oito primeiros meses da gestão ao qual a Repórter Brasil teve acesso. Os dez assentamentos criados somam área de 10,5 mil hectares.
Por outro lado, continua a política em torno da emissão de títulos definitivos da terra para quem já é assentado, empreendida a todo gás sob Bolsonaro. Foram 38 mil títulos em 2023, segundo o Incra, somando Títulos de Domínio (TD) em assentamentos e glebas públicas e Contratos de Concessão de Uso (CCU). A meta deste ano é chegar a 57.623, segundo o balanço.
Em tese, a titulação seria a última etapa do processo de reforma agrária, depois da implementação de outras políticas públicas para atender famílias cadastradas e consolidar territórios, aponta Batista, da CPT.
”Porém, no governo Bolsonaro, se inverteu essa lógica. Colocou-se a titulação como sendo a primeira e única política para os assentados, e a gente percebe o governo atual tendo dificuldade de romper com essa lógica”, diz Batista. “Não somos contra a titulação, mas ela atropela o processo, porque sem estudo prévio para saber quais famílias já foram beneficiadas, corre-se o risco de titular quem não teve acesso (aos benefícios da reforma agrária). Se as pessoas continuarem na dependência do município, podem acabar vendendo o lote”, explica.
Quanto ao número de famílias assentadas anualmente, os dados obtidos pela reportagem mostram queda contínua desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, principalmente durante o governo Bolsonaro.
Em 2023, foram assentadas 5.711 famílias, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Essa era a meta do Incra para o ano.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável pelo Incra, afirma que o Plano Emergencial de Reforma Agrária prevê assentar 7.200 famílias e regularizar outras 40 mil, mas não fala em prazo.
O governo vem tentando levantar terras por outros caminhos. No anúncio oficial do Plano Safra 2023/2024, no primeiro semestre, o presidente Lula aventou a ideia de uma “prateleira de terras”.
”Se nós temos o Incra, que é responsável pela distribuição de terra nesse país, pela compra de terra, se nós temos em cada estado um instituto que cuida da terra, a minha pergunta é a seguinte: por que a gente tem que esperar as pessoas invadirem uma terra para a gente comprar? Por que a gente não faz um levantamento de todas as terras devolutas, de todas as terras ociosas e a gente cria no governo um balcão, uma prateleira de terras?’, discursou o presidente.
À reportagem, em novembro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário afirmou que a Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais foi reinstalada, e que ela dará ”início à consolidação de uma prateleira de terras públicas que podem ser destinadas à reforma agrária”. Porém, não explicou como o sistema vai funcionar.
‘Sem guerra’
Em meio à falta de resultados, parlamentares do PT teriam criticado a demora do andamento de programas, segundo apurou a Repórter Brasil. A lentidão também impulsionou protestos do MST ao longo do ano – além de ocupações de terra –, colocando o governo e o movimento em lados opostos em alguns momentos.
Lula chegou a dizer que era possível fazer a reforma agrária sem “barulho” e sem “guerra”. “Eu disse para o (ministro do Desenvolvimento Agrário) Paulo Teixeira esses dias: não precisa mais invadir terra. Se quem faz o levantamento da terra improdutiva é o Incra, o Incra comunica o governo quais são as terras improdutivas que existem em cada estado brasileiro e a partir daí vamos discutir a ocupação dessa terra. É simples. Não precisa ter barulho, não precisa ter guerra”, disse o presidente em junho.
Seus ministros adotaram tom ainda mais crítico. Em maio, Teixeira e o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, foram à Comissão de Agricultura e Reforma Agrária no Senado e tocaram no assunto. ”Não tem posicionamento dúbio: invasão de terras não é legítimo. Não devemos apoiar”, disse Fávaro. ”Isso é uma exigência do governo: com áreas ocupadas, não negociamos. Não há desse governo qualquer leniência com esse tipo de problema”, afirmou Teixeira.
Rodrigues, coordenador do MST, afirma que as ocupações ocorrem como um protesto contra fazendas ou empresários suspeitos de cometer violações, e não miram o governo nem são uma “moeda de troca”. “Não sou eu, João Paulo, aqui de São Paulo, que decido ‘gente, amanhã vamos ocupar terra no Pará’. Não se trata disso. É um combinação de gente desempregada, alguma fazenda que está desocupada, tem trabalho análogo à escravidão, não respeita o meio ambiente”, diz.
‘Nunca haverá, por parte do MST, uma moratória sobre ocupação de terra. O que há são cuidados. O MST não pode fazer ocupação com poucas famílias, não pode fazer em áreas produtivas que cumprem a função social, deve evitar áreas que podem ter conflito de alguma natureza”, continua.
Em meio a esse fogo cruzado, ainda houve em maio a instalação da CPI do MST no Congresso, lembra Rodrigues, acrescentando que a comissão teria atrapalhado os planos do governo de cuidar do assunto. ”A direita conseguiu enquadrar e constranger o governo com essa CPI. O governo achou que a CPI era um problema do MST, só que também paralisou tudo por sete meses”, afirma. A comissão perdurou na Câmara até setembro, e foi concluída sem a votação do relatório final.
E o ano que vem?
A maior preocupação para 2024 é garantir orçamento para o Incra. Mas o plano de gastos do Executivo sequer foi aprovado no Congresso. O orçamento previsto para o próximo ano, de R$ 567 milhões, é abaixo do necessário na avaliação de movimentos.
O MST diz ser necessário algo na casa de R$2,8 bilhões. Já a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) estima R$ 7 bilhões.
A falta de orçamento afeta as políticas agrárias há dez anos, avalia Ceres Hadrich, coordenadora do escritório nacional do MST. “Nos assentamentos não conseguimos acessar as políticas públicas individuais e coletivas’.
”A gente está na briga para que o governo recomponha esse orçamento. Para o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) há recursos, por que não pode tirar algo disso para a reforma agrária? A gente avalia que está devagar, mas não é hora de desanimar”, diz Alair Luiz dos Santos, secretário de política agrária da Contag.
”Os recursos destinados no orçamento do Incra são menos da metade do que um parlamentar tem direito de emenda individual impositiva. São cerca de R$ 11 milhões a R$ 12 milhões para investimento nas ações da reforma agrária no Brasil inteiro”, disse o senador Beto Faro (PT-PA), em discurso em agosto. À reportagem, o parlamentar, que já foi superintendente do Incra em Belém, disse que vai destinar emendas ao órgão no próximo ano.
Negreiros, superintendente do Incra em Marabá, diz conhecer bem a sensação da espera das famílias que aguardam o cenário mudar. Ele é agricultor familiar, assentado pela reforma agrária em São Geraldo do Araguaia, na região do Baixo Araguaia, mas aguarda há mais de três décadas pelo título definitivo da terra. Confirmado o orçamento enxuto outra vez, ele também se preocupa.
”A gente fica na angústia de sempre, porque sabe que não vai atender a demanda. A gente tem quase 200 áreas que o povo está ocupando, a maioria teria condições de fazer obtenção, mas cadê o dinheiro para comprar e assentar esse pessoal? Com um orçamento desses, não tem”, finaliza.