Nesta quarta-feira (29), a Justiça determinou multa de R$ 5 mil por dia para a clínica de reabilitação Os Filhos de Maria, em Campo Grande. Isso, em caso de descumprimento de decisão anterior, que determinou a interdição do local.
No ano passado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura esteve no local, com a Defensoria Pública, e constatou inúmeras irregularidades. Como o estabelecimento não cumpriu, deve ocorrer a interdição.
Assim, o magistrado determinou o cumprimento da decisão anterior, que previa o fechamento da clínica, sob pena de multa de R$ 5 mil por dia, podendo chegar ao limite de R$ 500 mil.
Requerimento
Nova denúncia feita na terça-feira (28) indica que os casos de maus-tratos continuam, dois meses após decisão para interdição da unidade.
Conforme a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, a inspeção no ano passado constatou violações de direitos e irregularidades. Com isso, um requerimento foi apresentado, em ação civil pública, para interdição completa da clínica.
Ainda antes do recesso forense, em 11 de dezembro, o juiz atendeu ao pedido e determinou “a imediata interdição com urgente impedimento da entrada de pacientes, bem como o encaminhamento à Rede de Atenção Psicossocial ou entidades de acolhimento do SUS de todos aqueles que ainda estivessem no local”.
Não cumprimento da decisão
Porém, em 17 de janeiro, a Defensoria se manifestou novamente ao saber que a clínica não cumpriu a decisão para interdição. Então, informou o descumprimento, bem como requereu a imediata interdição.
Já na terça-feira (28), com a nova denúncia, a Defensoria voltou a se manifestar para que oficial de Justiça cumpra a decisão. Em nota, ainda afirma que denúncias dessa natureza devem ser feitas à Defensoria Pública, “para que as medidas legais e judiciais cabidas sejam imediatamente adotadas”.
Nova denúncia contra a clínica
Recomendação
Em novembro, o MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) publicou um relatório, detalhando ocorrências na clínica. O documento apontou condições degradantes e abusos contra os internos.
Diante da gravidade do caso, o MNPCT solicitou ao MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), TJMS (Tribunal de Justiça de MS) e a Defensoria Pública que tomassem providências para o fechamento da clínica, além de pedir que a Vigilância Sanitária de Campo Grande interditasse o estabelecimento.
O relatório também trazia recomendações direcionadas à Polícia Civil, ao Ministério Público do Trabalho da 24ª Região e à Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, embasadas nos relatos dos pacientes e na situação crítica identificada no local.
Feridos, dopados e obrigados a trabalhar
O relatório publicado pelo MNPCT detalhou as situações graves vividas pelos internos. No local, o cenário encontrado eram pacientes extremamente dopados, que não conseguiam nem balbuciar o próprio nome, conforme descrito pela Coordenadora do NAS (Núcleo de Atenção à Saúde) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, Eni Maria Diniz.
“Nós começamos a conversar com algumas pessoas e, de imediato, assim que pusemos o pé ali, nós já recebemos um primeiro pedido de socorro, de um senhor idoso que estava fazendo uma limpeza lá, dizendo que ali havia pessoas doentes sem o devido cuidado”, conta.
Assim, o que era para ser uma fiscalização de rotina do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Controle e Combate à Tortura) resultou na constatação de inúmeras irregularidades passíveis de criminalização, como cárcere privado, sequestro e lesão corporal.
Relatório expôs em detalhes violações sofridas
A clínica Os Filhos de Maria tem uma estrutura composta por dois prédios, que à primeira vista sugeriam um ambiente organizado. No prédio principal, a portaria e a administração davam uma aparência de ordem e controle. Mais ao fundo, no prédio secundário, ficavam os alojamentos e a enfermaria, onde os pacientes passavam a maioria do tempo.
Na teoria, o espaço parecia oferecer uma boa estrutura para a recuperação: academia, quadra de esportes, uma horta que poderia incentivar o contato com a natureza, piscina e uma área destinada ao cultivo de frutas. Com três veículos disponíveis para transporte, a promessa de recuperação parecia bem embasada.
Mas, ao cruzar a porta dos alojamentos, as condições insalubres evidenciavam o abandono do lugar. Os ambientes tinham pouca iluminação e ventilação. O cheiro de sujeira preenchia todo o espaço. As camas, longe de oferecer qualquer conforto, estavam cobertas por lençóis rasgados e colchões velhos; uma delas, inclusive, estava suja de urina.
Em todos os alojamentos havia beliches de madeira, mas muitas delas apresentavam um estado de conservação precário. Em cada um dos espaços visitados, as equipes do MNPCT identificaram quartos de tamanho insuficiente para a quantidade de pessoas ali internadas.
Internos obrigados a cozinhar alimentos contaminados
Às 11h, serviam o almoço, sempre acompanhado pela administração de medicamentos. Como muitos internos ficam sonolentos devido às medicações, o descanso ocorria a partir das 14h30. O jantar, servido às 18h, trazia sempre a mesma opção: sopa de legumes com macarrão.
As refeições eram preparadas pelos próprios internos, sem a supervisão de um profissional contratado pela instituição, como um nutricionista. No dia da inspeção, a equipe do MNPCT flagrou três homens preparando o almoço para os demais acolhidos.
Um dos internos, que se identificou como um dos seis cozinheiros que atuavam sem salários no local, relatou que, dias antes da visita, a despensa de alimentos ficou inundada por água suja devido a um vazamento no banheiro.
Pacotes de arroz, feijão, macarrão e café ficaram encharcados, apresentando aspectos de podridão. No entanto, o proprietário da clínica não autorizou o descarte desses alimentos, ordenando que fossem cozidos e consumidos pelos internos.
“Por diversos dias, os internos consumiram esses alimentos, possivelmente contaminados. Após esse incidente, a clínica relatou aos internos que houve uma reforma para corrigir o vazamento”, diz o relatório.
‘Resgates involuntários’
A clínica também atuava com ‘resgates involuntários’, o que significa a condução coercitiva da pessoa submetida à internação, realizada por monitores da unidade, sem a presença de qualquer profissional de saúde. Na maior parte dos casos, a família liga para pedir ajuda e a clínica oferece o ‘resgate’. Assim, equipe de ‘resgate’, composta pelos próprios internos, ganhava R$ 50,00 por ‘resgate’ em Campo Grande e R$ 100,00, no interior.
O que dizem as autoridades?
Em nota, a DPU (Defensoria Pública da União) afirmou que repassou a denúncia aos defensores que atuam em Campo Grande. “O defensor nos informou que contactará as demais autoridades do Estado para verificar as medidas que poderão cabíveis.”
Por sua vez, o Ministério dos Direitos Humanos informou que irá apurar a denúncia, já que a recomendação era que o local já tivesse encerrado suas atividades.
Questionada sobre o caso, a Prefeitura de Campo Grande informou apenas que a SAS (Secretaria de Assistência Social) e a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) não possuem convênio com a Comunidade Terapêutica Filhos de Maria.
Na época em que o caso foi revisitado, a SDHU (Secretaria Nacional dos Direitos Humanos) esclareceu que, apesar de não ter poder para fechar locais irregulares, investiga denúncias e encaminha os casos aos órgãos fiscalizadores competentes, incluindo aqueles não conveniados. Por fim, o MPMS não respondeu aos questionamentos. O espaço segue aberto para manifestação.