A operação Ultima Ratio revelou ao Brasil, no fim de outubro, um esquema de venda de sentenças dentro do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul). No centro das investigações, estão cinco desembargadores que acabaram afastados do cargo. Mas ao longo de anos de apuração, outros nomes e fatos ajudaram a polícia entender a dimensão dos crimes praticados no Judiciário do estado: entre eles, o conflito dos principais alvos da operação com juízes que atuam em Campo Grande.
Entre as páginas com detalhes da investigação, mais de 30 foram destinadas a especificar a relação entre o desembargador Sérgio Fernandes Martins – que até o dia da operação era o presidente do TJMS – e os juízes da 1ª e da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos da capital sul-mato-grossense.
O começo das provas
Segundo as investigações, em 2021 e 2022 o conflito entre Sérgio Martins e o então juiz da 2ª Vara de Direitos Difusos de Campo Grande, David de Oliveira Gomes Filho, resultou no pedido do magistrado para mudar de Vara.
A remoção de David foi aceita pelo desembargador Sideni Soncini Pimentel no dia 25 de abril de 2022, mas foi em fevereiro daquele ano, de acordo com as investigações, que o juiz deixou claro os ataques de Sérgio Martins em um dos processos analisados por ele.
A ação nasceu na Vara de David, mas graças aos recursos foi enviada para as mãos de Sérgio Martins.
O desembargador não só anulou a decisão inicial do juiz, como usou o voto para “ataques pessoais gratuitos a sua honra”. Cada ponto foi rebatido por David assim que o processo voltou para suas mãos.
No despacho, o juiz alegou ainda que o voto do colegiado era “difícil ou impossível de ser cumprido” devido à “confusão de dados utilizados”, além de fugir a boa técnica e ser baseado em “premissas imaginárias”.
Enquanto era acusado de esconder medidas cautelares contra os réus, o juiz explicou que o fato citado pelo desembargador sequer era analisado em sua Vara e, por isso, não foi usado na decisão.
Depois de listar cada ponto de dúvida no voto e também aqueles que não poderia cumprir, David determinou uma audiência entre defesa e Ministério Público para encontrar um meio de atender a determinação do colegiado, mas logo deixou a 2ª Vara de Direitos Difusos.
Para a Polícia Federal, o voto “confuso” do desembargador e o conflito evidente com o juiz é uma prova de que Sérgio Martins, já naquela época, estava envolvido em vendas e direcionamentos de decisões judiciais.
Para entender melhor o desentendimento, o Primeira Página procurou o juiz David de Oliveira Gomes Filho, que hoje atua na 3ª Vara do Juizado Especial da comarca de Campo Grande, mas o magistrado preferiu não se manifestar sobre o assunto.
Enquanto isso, na 1ª Vara
O conflito entre Sérgio Martins e o juiz da 1ª Vara de Direitos Difusos ocorreu neste ano e teve grande repercussão porque envolveu um dos processos ambientais mais polêmicos de Campo Grande: o desmatamento da mata no Parque dos Poderes para a construção do novo prédio do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.
Era da responsabilidade do juiz Ariovaldo Nantes Correa a decisão sobre a liberação, ou não, da construção, mas em janeiro de 2024 ele saiu de férias e foi substituído pela juíza Elizabeth Rosa Baisch, mesmo não sendo ela o nome indicado conforme as leis de substituição legal da vara.
Em uma semana no lugar de Ariovaldo, Elizabeth deu a sentença favorável ao desmatamento de parte do Parque dos Poderes. Em seis meses, ela deixou de ser juíza para se tornar desembargadora de Mato Grosso do Sul, assumiu a vaga de Júlio Roberto Siqueira, que também é investigado na operação.
Assim que retornou de férias, o juiz titular da Vara anulou a sentença e quando viu a colega assumir o novo cargo, enviou pedido de providências ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) contra Sérgio Martins e Elizabeth Rosa.
No documento, o juiz chegou a afirmar que a colega, “certa de que seria vencedora”, mandou arrumar o futuro gabinete 48 horas antes. “É algo inédito e uma afronta às demais colegas que estão na disputa e, aparentemente, confirma a suspeita do acordo indicado na petição inicial”.
Para a Polícia Federal esse acordo existiu e está comprovado na rapidez da decisão e na promoção dela ao cargo de desembargadora.
Já a tentativa do juiz Ariovaldo Nantes Correa no CNJ foi arquivada. Na decisão o conselheiro Caputo Bastos alegou que não havia provas ou indícios suficientes que comprovassem o acordo, além de reforçar que o juiz saiu de férias no mesmo mês em que a maioria dos juízes e por isso, Elizabeth Rosa foi nomeada em seu lugar.
O pedido de providência foi arquivado no dia 26 de agosto. Já o processo sobre o desmatamento do Parque dos Poderes foi reavaliado em setembro e continuou anulado.
O que diz a justiça?
Ó Primeira Página entrou em contato com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para entender o arquivamento as denúncias feitas pelo juiz Ariovaldo Nantes Correa, mas, em resposta, recebeu apenas o número do processo com a decisão.
A reportagem ainda questionou se as provas listadas pela operação podem resultar em uma reabertura do procedimento, mas não obteve resposta dessa pergunta.
A Amamsul (Associação dos Magistratos de Mato Grosso do Sul) também foi procurada para falar do conflito entre juízes e o desembargador Sérgio Martins, mas não se manifestou. Apenas repetiu a nota divulgada no dia da operação, em que alegou acompanhar os desenrolar da ação policial e do processo.
O TJMS também foi procurado, assim como foram feitas tentativas de contato para os gabinetes da desembargadora Elizabeth e do juiz Ariovaldo, mas sem sucesso. O espaço segue aberto para ouvir as partes.