“Passei por dois abusos nos quais eu não fui ouvida”. Esse é o relato de uma das vítimas de denúncia de pedofilia dentro da denominação cristã Testemunha de Jeová. Na época do ocorrido, ela tinha apenas 10 anos e, segundo conta, foi ignorada pelo “tribunal” da doutrina porque não levou testemunhas que pudessem confirmar o crime sofrido.
A organização afirma abominar “o abuso de menores” e considera isso “um crime”.
Entretanto, publicações apoiam práticas que dificultam a punição. A revista “A Sentinela – Anunciando o Reino de Jeová”, por exemplo, serve como um manual para os anciãos da congregação. Em uma das versões afirma que são necessárias, no mínimo, duas testemunhas para que se inicie uma audiência jurídica dentro da igreja contra um acusado de abuso sexual de menores.
“Essa regra possui conotação manifestamente discriminatória contra mulheres e meninas e proporciona que o agressor continue praticando essa modalidade de crime hediondo”, explica a Promotora de Justiça (MP-SP) e Presidente do Instituto Pró-Vítima, Celeste Leite dos Santos.
De acordo com ela, como o crime que ocorre na clandestinidade, dificilmente existirão testemunhas.
“Além de não proteger e acolher a vítima ainda propicia sua revitimização e, muitas vezes, a vítima é punida sendo expulsa da comunidade. O problema é de conhecimento da cúpula da igreja sediada nos Estados Unidos”, argumenta.
Vítima negligenciada
“Fui encarada como uma pessoa tola, que sabia que aquilo era errado mas que deixou acontecer. Nos dois casos (de abuso) que sofri, foram membros da congregação (que cometeram). Eles não receberam nenhuma punição. Isso me faz crer que a prática continua sendo levada adiante”, diz a vítima Mirela Costa, hoje com 26 anos.
O manual da igreja se baseia em interpretações bíblicas para justificar a necessidade de múltiplas testemunhas. Uma edição da revista “A Sentinela”, de maio de 2019, afirma que esta exigência é necessária “para manter um alto padrão de justiça”.
Conforme a edição de novembro de 1995, caso não haja testemunhas, antes de fazer a denúncia contra o abusador, a vítima deve recuperar “recordações reprimidas” para não realizar acusações precipitadas.
“Quem de fato abusa sexualmente de uma criança é um estuprador e deve ser encarado assim. A vítima desse tipo de abuso tem o direito de denunciar o molestador. Mesmo assim, não se deve fazer precipitadamente uma acusação formal se ‘recordações reprimidas’ forem a única base para isso. Nesse caso, o mais importante é que a pessoa recobre certo grau de estabilidade emocional. Passado algum tempo, ela talvez fique em melhores condições de avaliar as ‘recordações’ e decidir o que fazer a respeito, se é que fará alguma coisa”, diz trecho da edição.
Pedófilos arrependidos recebem perdão e permanecem na igreja Testemunhas de Jeová
Dentro dos Testemunhas de Jeová, o molestador tem direito a perdão caso se arrependa do abuso.
“Os homens recebem maiores privilégios, o que faz com que eles possuam cargos de chefia e dominância, tendo o direito de serem respeitados acima de tudo e qualquer pessoa. Principalmente se for uma mulher que ousar ser contra um deles, ela é vista como arrogante e prepotente, tornando-se, além de mal vista, muito marcada como uma pessoa que precisa ser disciplinada”, diz Mirela Costa, suposta vítima de assédio nos Testemunhas de Jeová.
A edição de 2019 da revista menciona que, se o abusador estiver arrependido, ele pode continuar na congregação. A posição é sustentada por uma carta de outubro de 1995, que orienta as congregações a lidar com abusadores arrependidos com franqueza e aconselhamento, permitindo que eles permaneçam membros ativos.
“É apropriado usar de bastante franqueza com alguém que abusou de uma criança e dar-lhe conselhos fortes sobre o perigo de abraçar ou segurar crianças no colo”, diz a carta da Sociedade Torre de Vigia, que administra as Testemunhas de Jeová no Brasil.
Acusação formal
O artigo de 1995 diz ainda que, caso a vítima decida fazer uma acusação formal, ela deve conversar pessoalmente com o abusador e que, caso não esteja em condições emocionais de confrontar o acusado, “poderá telefonar-lhe ou enviar-lhe uma carta”.
“Assim ele tem a oportunidade de defender-se da acusação, perante Jeová. E pode até apresentar evidências de que é impossível que tenha cometido o abuso de que é acusado. Ou talvez confesse o erro e possa haver uma reconciliação, o que seria muito positivo! Se ele confessar a culpa, os dois anciãos poderão tratar do assunto em conformidade com os princípios bíblicos”, afirma a publicação.
A política da igreja estabelece que, se o acusado negar o abuso e não houver testemunhas suficientes, ele será considerado inocente pela audiência jurídica da congregação.
No entanto, a publicação de 1995 sugere que, mesmo sem penalidades internas, os culpados não escaparão das “mãos de Jeová”.
Justiça humana x Justiça divina
A política interna das Testemunhas de Jeová contrasta fortemente com a legislação penal brasileira.
Desde a alteração do Código Penal em 2009 pela Lei 12.015, crimes sexuais contra crianças e adolescentes são tratados com severidade. O artigo 213 do Código Penal define penalidades rigorosas para o estupro, especialmente quando a vítima é menor de 18 anos.
A pena para estupro de vulnerável, definido como ato libidinoso com menores de 14 anos, varia de 8 a 15 anos de reclusão, podendo aumentar significativamente se houver lesão corporal grave ou morte.
O que diz a igreja Testemunha de Jeová
Procurados pelo Metrópoles, os Testemunhas de Jeová afirmam que “o bem-estar de crianças e adolescentes é de máxima importância” para a doutrina.
“As Testemunhas de Jeová abominam o abuso de menores e consideram isso um crime. Elas reconhecem que compete às autoridades cuidar desses crimes e não protegem das autoridades ninguém que comete abuso de menores. Em todos os casos, as vítimas e seus pais têm o direito de reportar às autoridades uma acusação de abuso de menores” diz nota enviada à reportagem.
FONTE: TOPMIDIANEWS