Senadores à esquerda dizem em conversas reservadas que ‘boiadinha ideológica’ tem avançado
O Senado Federal tem dado vazão a pautas ideológicas e avançado em temas antes restritos à Câmara dos Deputados, como a castração química para estupradores, bandeira histórica de Jair Bolsonaro (PL).
Apesar de ter sido proposta pelo ex-presidente em 2013, quando era deputado federal, e reapresentada por Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em 2020, foi pelas mãos dos senadores que a castração química voluntária de fato avançou, mais de uma década depois.
O projeto de lei, de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), foi incluído na pauta da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) pelo presidente do grupo, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e aprovado por 17 votos a 3.
A aprovação na CCJ abriu caminho direto para a Câmara dos Deputados. O projeto tramitava em caráter terminativo e só seria discutido no plenário do Senado se houvesse pedido de recurso até quinta (6), o que não aconteceu.
Só neste ano, o Senado também votou e aprovou a emenda à Constituição que criminaliza o porte e posse de drogas e o projeto que acaba com as saidinhas temporárias de presos, que havia sido validado por deputados federais em 2022.
Diante dos últimos movimentos, parlamentares mais à esquerda têm dito em conversas reservadas que a “boiadinha de costumes”, ironicamente, já passou mais no governo Lula (PT) que nos quatro anos do governo Bolsonaro.
“Passar a boiada” é uma referência à fala do então ministro do Meio Ambiente na gestão Bolsonaro, Ricardo Salles, atual deputado federal pelo PL-SP, que sugeriu durante reunião ministerial que o governo aproveitasse o foco da imprensa na pandemia de Covid-19 para afrouxar normas ambientais.
Parte da base afirma que a frustração é ainda maior porque o governo federal não tem nem sequer tentado conter a agenda ideológica, o que faz com que as pautas bolsonaristas sejam aprovadas com pouco ou nenhum combate.
O diagnóstico é o de que a situação deve ser ainda pior se Alcolumbre for mesmo eleito presidente do Senado no ano que vem. Ele deve concorrer ao cargo. O senador tem afirmado a pessoas próximas que vai ser difícil “fazer o certo” após as eleições municipais –frase que, para governistas, soa como aceno ao grupo de Bolsonaro.
Outra previsão feita nos corredores do Congresso por Alcolumbre é a de que a eleição de 2026, quando cada unidade da federação vai escolher dois senadores, deve inverter o quadro de forças e consolidar maioria para o bolsonarismo.
A mudança de postura do Senado coincidiu com a intensificação da articulação de bastidores para que Alcolumbre substitua Rodrigo Pacheco (PSD-MG) no comando da Casa em fevereiro de 2025. O político do Amapá é o favorito e busca evitar que o grupo mais bolsonarista, que reúne cerca de 30 dos 81 senadores, lance uma candidatura concorrente.
Apesar da decepção da esquerda com matérias de costumes, até mesmo um senador ligado a Bolsonaro disse à reportagem que, no quadro geral das comissões, vê hoje um vácuo de ideias relevantes para o país.
Já um senador de esquerda afirma que a Casa tem se rendido a ideias do senso comum. Ele diz que, apesar de o conservadorismo sempre ter existido, ex-governadores e ex-ministros que integravam o Senado ajudavam a barrar projetos inconstitucionais.
O sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, que cunhou o termo “presidencialismo de coalizão”, afirma que alguns fatores explicam a perda de qualidade política no Congresso Nacional.
Um deles, avalia, é o enfraquecimento de partidos que antes organizavam oposição e governo, como MDB, PT, PSDB e PFL/DEM (batizado de União Brasil após a fusão com o PSL), notadamente de 1994 a 2014.
Abranches aponta que o crescimento de legendas do chamado centrão leva, inclusive para o Senado, a preocupação municipalista e que há, no quadro geral partidário, ausência de canais de renovação política.
“O centrão é uma coalização de chefes locais. São partidos muito fragmentados. Com a elevação da representação do centrão, você tem naturalmente uma depreciação do tipo de liderança que você tem no Congresso”, afirma.
“Você vai passar a ter lideranças mais voltadas para questões puramente locais e com muito pouca visão nacional, geral. O Congresso hoje não tem essa capacidade de discussão de temas mais estratégicos, sobretudo fora da economia.”
Para Abranches, a relação direta entre desempenho econômico e popularidade –não só para o presidente da República, mas também para os parlamentares– faz com que o ambiente seja mais “organizado”.
O defensor público do Distrito Federal Felipe Zucchini, que atua no núcleo de execuções penais, vê na agenda do Senado uma antiga fórmula de capitalização eleitoral por meio de projetos de lei punitivistas.
Ele diz que a preocupação cada vez maior dos parlamentares com as redes sociais também encurtou o debate sobre os projetos encampados neste ano –proposta antidrogas, fim das saidinhas e castração química.
“Temas de relevância que antes poderiam ser submetidos a maior debate, esclarecimentos técnicos e sedimentação de consenso hoje viram propaganda e tensionamento entre os Poderes”, diz.
“Um parlamentar minimamente moderado poderia frear (um projeto), negociar e racionalizar seu voto. Mas hoje há o julgamento imediato da pauta diante do receio de ser cancelado pelas redes.”
*Informação da Folhapress