As estradas em Mato Grosso do Sul levam ao milionário caminho do narcotráfico e do contrabando no País. Rota do crime consolidada, as rodovias estadual e federal representam desafio na fiscalização e na repressão à ação das quadrilhas. Enquanto a Polícia Rodoviária Federal (PRF) aumentou em 46% o volume da cocaína apreendida, a Polícia Federal (PF) centra esforços para estrangular o patrimônio das organizações criminosas.
De janeiro a dezembro de 2023, a PRF apreendeu 15,4 toneladas de cocaína, enquanto que, em igual período do ano passado foram 10,5 toneladas da droga. O mesmo aumento foi notado nas rodovias estaduais, conforme informações divulgadas pela Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública (Sejusp): no ano passado, foram 18,4 toneladas da droga confiscadas. Em 2022, foram 16,6 toneladas.
O número de apreensões também é reflexo da explosão da produção da cocaína, um fenômeno já descrito no Relatório Mundial sobre Drogas da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) em 2022 e 2023, em que foram apontadas inovações no cultivo e na produção da coca, aumento da demanda e ampliação da logística, como uso de aeronaves para abastecer os mercados interno e externo. Em relação à maconha, houve decréscimo nos flagrantes.
Em MS, além de coibir a distribuição interna, o desafio também é estancar a passagem da droga que abastece os grandes consumidores. “O Estado se estabeleceu como grande corredor de passagem das drogas”, disse o delegado Lucas Vilela, chefe do Grupo Especial de Investigações Sensíveis (Gise) da PF em Mato Grosso do Sul.
“Aqui em MS a gente lida com a organização responsável pela logística de transporte”, disse o delegado. Do Peru, Bolívia e Colômbia, chegam a cocaína consumida no Brasil e outros países. O Paraguai é o grande fornecedor de maconha. As cidades de Campo Grande, Dourados e Três Lagoas são usadas como entreposto das cargas, ponto de parada para o destino final, normalmente, São Paulo, Rio de Janeiro ou Paraná e os mercados internacionais.
A Polícia Federal tem dado mais ênfase à descapitalização das organizações criminosas, como forma de minar toda a estrutura. O Gise, instituído em todo o País a partir de 2011, faz parte dessa estratégia, tendo como objetivo o combate às organizações com emprego de técnicas especiais de investigação.
Vilela assumiu o grupo em MS em novembro de 2018, com foco na repressão ao crime de lavagem de capitais e a consequente descapitalização dos criminosos.
“Preocupação maior da nossa unidade é identificar a estrutura da organização, ver quem dela está se beneficiando, identificar o patrimônio que está ocultado”, explicou o delegado. O trabalho é minucioso e leva às ramificações do crime, já que os bens costumam ser colocado em nome de terceiros, como parentes ou “laranjas”. Feita essa vinculação, a próxima etapa é pedir o sequestro de bens e imóveis, para acabar a atividade do grupo criminoso.
Dados da coordenação-geral de Repressão a Drogas, Armas, Crimes contra o Patrimônio e Facções Criminosas da PF indicam que, de janeiro a novembro de 2023, a PF apreendeu, no País, R$ 2,07 bilhões em bens e valores dos grupos criminosos envolvidos com narcotráfico, um recorde da série histórica iniciada em 2014.
Nesta lista, entram dinheiro vivo encontrado no cumprimento dos mandados de busca, valores em contas bancárias, imóveis, carros e aeronaves, tudo sequestrado e bloqueado pela Justiça.
Dizimar a ação de uma quadrilha enfrenta dinâmica semelhante à Hidra, o mitológico monstro de múltiplas cabeças de serpente que tinha como poder regenerar esses membros quando decepados. No mundo do crime, quando chefe cai, outro logo assume a função e a logística disponível. “Não tem regra definida, o espaço que era ocupado por um, se é preso, é ocupado por outra pessoa, quem tinha papel menor pode ascender”, cita.
O que parece trabalho de “enxugar gelo” é considerado essencial para evitar o domínio do crime organizado e a entrada em áreas sensíveis, como na esfera política.
“Em alguns países, como México, o tráfico domina e se insere na sociedade sem que se consiga reverter isso; a gente busca evitar que o tráfico domine o país (Brasil) e, se não tiver repressão, ele vai quer se ampliar”, avaliou o delegado.
Questionado sobre os casos de eleição de vereadores ou deputados ligados às facções criminosas, como já foi descoberto pelas polícias no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, Vilela diz que são casos pontuais e que não representam hoje a realidade do País.
Em 2023, o Gise em MS se debruçou sobre duas operações. A primeira ocorreu em junho, denominada Ardea Alba (Garça Branca), e tinha como alvo grupo sediado em Corumbá e Coxim e que transportavam droga, especialmente cocaína, para os grandes centros consumidores por aeronaves, com uso de pistas clandestinas. Durante a investigação, 12 pessoas foram presas e 2,6 toneladas de cocaína.
A outra operação foi a Sanctus, deflagrada em dezembro em MS e mais três estados. Aqui, foram cumpridos 21 mandados de busca e apreensão e três de prisão em Dourados, Ponta Porã e Guia Lopes de Laguna. Foram apreendidos fuzis, pistola, espingarda, munições, joias, aeronave e quatro veículos. De acordo com Vilela, foram confiscados de R$ 40 a R$ 50 milhões em patrimônio do grupo criminoso.
No trabalho de investigação, o delegado diz que os “cabeças” do crime não são faccionados, embora mantenham negociações com esses grupos. “Os grandes traficantes que a gente acompanha não se apresentam como faccionado, eles se têm como empresário”, diz Vilela. O trabalho de preparo e transporte da droga ficam em nível abaixo na pirâmide criminosa.
“A gente consegue sequestrar milhões, que vão ser revertidos a favor da população; no fim das contas, a gente acaba minando e enfraquecendo esses grupos, nunca vai voltar como era antes, vão ter muita dificuldade de se restabelecer”.