Ela não se calou: como mulher rompeu o ciclo da violência e se distanciou do marido agressor
Para celebrar o Dia Internacional da Mulher comemorado neste sábado (8), o Dourados News traz a história de Aline* (nome fictício), 32 anos, uma mulher que, apesar de tantas adversidades, conseguiu romper o ciclo da violência e se reerguer.
A história dela não é apenas um relato de dor, mas também um testemunho de coragem, resistência e superação. Durante mais de três anos, a douradense viveu um relacionamento abusivo, marcado por agressões físicas e psicológicas.
No início, tudo parecia tranquilo. “Nos primeiros dois, três meses, ele era uma boa pessoa”, contou ao Dourados News. Mas logo vieram as ofensas, os xingamentos, as ameaças.
Quando engravidou, a violência escalou. “Ele me empurrava, eu caía no chão. Com quatro semanas, tive um começo de aborto. Foi até os oito meses assim, vivendo com medo.”
O ciclo do abuso se intensificava a cada dia, e as palavras dele desencorajavam ela de tomar qualquer atitude. “Ninguém vai te empregar com criança pequena! Você não tem para onde ir! Você é feia, ninguém vai te querer!”.
Aos olhos dos familiares ele era um homem trabalhador e isso bastava. “É normal apanhar, apanhei a vida inteira e nunca mandei prender meu marido”, dizia a sogra. “Você vai deixar prender seu marido, um homem trabalhador”, dizia a mãe dela.
Para a vizinhança, Aline era ‘a louca’, alguém que inventava histórias. O silêncio foi seu refúgio e também sua prisão. Mas o medo de morrer e de perder sua filha a fizeram buscar ajuda de onde ela nem imaginava que teria.
“Ele falava que, se fosse preso, sairia e me mataria. Que mataria minha filha também e fugiria para o Paraguai”, disse. O desespero tomava conta. “Eu não sabia para onde ir, o que fazer.”
Em um local público, Aline conheceu uma senhora e, em um momento de desabafo, contou sua história. Elas trocaram contato, e a mulher disse que, quando precisasse, poderia ligar para ela. E esse dia chegou.
Quando a filha tinha pouco mais de um ano, a violência atingiu um novo patamar. Durante uma discussão, o agressor pegou uma faca e avançou sobre Aline, que estava com a criança no colo.
Em um ato de desespero, ela colocou a filha no chão e conseguiu desarmá-lo.
Enquanto arrumava suas coisas para ir embora, enviou uma mensagem para a senhora, que chegou ao local acompanhada da Guarda Municipal. O homem foi preso.
Nessa época, ela começou a trabalhar em uma loja da filha da senhora que passou a ajudá-la desde o dia que teve conhecimento da história.
Mas a luta estava longe do fim.
Após sair da prisão, seu ex-companheiro violou a medida protetiva, perseguiu-a, tentou intimidá-la. Foi quando, em uma noite de desespero, navegando nas redes sociais, encontrou a página do Promuse- Programa Mulher Segura da Polícia Militar.
Sem grandes expectativas, enviou uma mensagem. “Eles me responderam. A Priscila (referindo-se a Tenente chefe da equipe) me ligou. Ela foi até onde eu trabalhava, me ouviu, me acolheu”.
Com o acompanhamento dela e da equipe, Aline começou a reconstruir sua vida.
“Ele achava que eu não teria coragem de denunciá-lo de novo. Mas tive. Com os relatórios da Priscila e o apoio da rede de proteção, ele foi preso novamente”, relembra Aline.
Nesse caminho de romper o ciclo, ela conquistou a guarda exclusiva da filha, venceu o processo contra o agressor e segue recebendo acompanhamento.
“Ele parou de me perseguir e ameaçar, ainda sinto um pouco de medo, mas nem se compara ao que eu vivia antes, estou bem mais aliviada”, afirmou.
As marcas do passado
Os traumas deixaram marcas profundas, não só em Aline, mas também na filha do casal, de 6 anos.
A menina desenvolveu uma perda auditiva irreversível, resultado dos anos em que o agressor aumentava o som no último volume para que os vizinhos não ouvissem as agressões.
“Na escola, ela tinha dificuldades de atenção. Em casa, falava muito alto. Até que descobri que ela não escuta bem de um dos ouvidos. O laudo médico apontou a perda de 70% de audição.”
Recomeço
Hoje, cinco anos depois de sair daquele relacionamento abusivo, Aline tem sonhos e planos.
Voltou a estudar e quer fazer faculdade de Direito. “Estou terminando pedagogia, mas me envolvi tanto com essas questões que até minha advogada disse: ‘Você precisa cursar Direito’.
Enquanto o sonho da faculdade ainda não se concretiza, ela está fazendo um curso técnico de serviços jurídicos paralelo a faculdade de pedagogia.
Ela também precisou reaprender a se enxergar como mulher. “Você é feia, você tá gorda, ninguém vai te dar emprego com criança pequena. Eu nem me olhava mais no espelho. Comecei a me arrumar há pouco tempo, arrumar cabelo, ir ao salão, sentar na frente da minha casa, ter amizades, coisas que não existiam para mim”.
Aline sabe que ainda há desafios emocionais a superar. “Se relacionar com outra pessoa ainda não consigo, mas é um dia de cada vez.”
Para outras mulheres que vivem situações semelhantes, ela deixa um recado. “Eu consegui, e você também pode. A gente acha que está sozinha, mas não está. Existe apoio. E denunciar é o primeiro passo para a liberdade”, afirmou.
“As pessoas acham que não adianta denunciar. Mas adianta. Eu sou a prova disso. Com a rede de apoio consegui muita coisa que me ajudou a romper o ciclo, como o emprego e uma advogada gratuita, além de todo amparo psicológico”, finalizou.
Psicóloga dá dicas de como identificar e sair de um relacionamento abusivo
Muitas mulheres não conseguem identificar que estão em um relacionamento abusivo, principalmente quando o abuso é psicológico ou emocional. Em entrevista ao Dourados News a psicóloga Kelly Wegrat, que atende mulheres vítimas de violência no ‘Viva Mulher’, fala sobre os sinais que podem indicar um relacionamento abusivo e compartilha dicas de como sair desse ciclo.
“É importante ficar atenta a esses sinais no início, porque muitas vezes, o comportamento abusivo vai se agravando gradualmente até chegar no feminicídio, o apíce da violência contra a mulher”, explica Kelly.
“A violência começa de forma sutil. O parceiro pode se mostrar carinhoso e atencioso, mas, com o tempo, começa a controlar suas ações, suas amizades, até o modo de vestir. O problema é que muitas mulheres não percebem esses sinais e acabam normalizando o comportamento abusivo”, explica a psicóloga.
Conforme a especialista, a manipulação emocional, em que o agressor se apresenta como vítima, também é uma tática comum usada para que a mulher se sinta culpada.
Ela destaca que o primeiro passo para sair de um relacionamento abusivo é reconhecer que a relação é tóxica. “É fundamental entender que o abuso não é aceitável. A mulher precisa se perguntar: ‘Eu estou sendo respeitada e valorizada neste relacionamento?’. Muitas vezes, o abusador faz com que a vítima se sinta culpada, mas a responsabilidade pela violência é sempre do agressor”, afirma.
A psicóloga também explica que, ao identificar o abuso, a mulher deve buscar apoio. “Não se deve enfrentar isso sozinha. Falar com pessoas de confiança, procurar um profissional ou um serviço especializado é essencial para entender a situação e buscar o suporte necessário”, recomenda.
Para quem busca sair do relacionamento, a profissional sugere pensar em um plano de segurança. “É muito importante planejar como sair de uma situação de risco. A mulher pode procurar redes de apoio onde se sinta acolhida até conseguir se organizar para seguir em frente”, orienta.
A sociedade muitas vezes descredita a palavra da vítima de violência, especialmente quando o agressor tem uma imagem positiva em outros ambientes, como no trabalho ou na comunidade. Para Kelly, isso torna ainda mais difícil para a mulher denunciar, por isso a importância de uma rede de apoio.
“Muitas vezes, a vítima se sente isolada e com medo de não ser acreditada, porque o agressor pode ser visto como um bom trabalhador ou um bom pai”, explica. A psicóloga enfatiza a importância de buscar apoio para dar o primeiro passo para a libertação.
“Não importa o tempo que a mulher tenha vivido nessa situação. O importante é entender que é possível recomeçar, recuperar a autoestima e sair do ciclo de violência”, conclui a psicóloga.
Fonte: Dourados News