Com lucro líquido superior a R$ 14 bilhões no ano passado, a empresa Suzano está se recusando a restabelecer o fornecimento de água a uma idosa de 75 anos que mora numa fazenda de 100 hectares próximo ao local onde a gigante da celulose construiu seu “porto seco”, às margens da ferronorte, no município de Inocência, na região leste de Mato Grosso do Sul. A mulher já recorreu à Justiça, mas nem isso adiantou.
Em decorrência da lama procedente do canteiro de obras do chamado terminal intermodal, dois reservatórios de água na propriedade de Aurea Machado de Freitas foram assoreados e ficaram com água barrenta.
“Sua vida, nesta propriedade, ‘virou do avesso’,com a implantação do chamado “Porto Seco”, uma obra de engenharia de grande porte, construída pela demandada em seu imóvel rural, que faz divisa com os da demandante”, escreveram os advogados na ação em que pedem indenização.
Esta água, além de servir para seus bovinos, era utilizada para consumo na residência, levada por uma antiga “roda de água”, já que um antigo poço artesiano que existe em sua casa está desativado faz anos. Porém, por conta da erosão e da terra procedente da obra da Suzano, a água do lago ficou imprópria para consumo.
Por conta do problema, procurou os responsáveis pelo empreendimento, que a partir de então reforçaram os diques e os lagos de contenção da água da chuva. Porém, para voltar a ter água, teve de instalar por conta própria uma tubulação de uma fazenda vizinha, de onde recebe água até agora.
Ela chegou a pedir que a construtora ajudasse a escavar uma valeta para que a tubulação de água pudesse ser instalada e enterrada, mas nem mesmo essa ajuda recebeu. Teve de buscar voluntários que fizeram a vala à base do enxadão e da pá.
A enxurrada aconteceu em dezembro do ano passado e como a construtora e a própria Suzano ignoraram a gravidade do problema, em meados de junho resolveu recorrer à Justiça para exigir a construção de um poço artesiano, reparação das despesas que teve para instalação da tubulação de água, ressarcimento pelo laudu técnico que anexou à ação judicial, indenização de R$ 200 mil por danos morais e reparação por conta da depreciação de sua propriedade depois daquilo que seus advogados classificaram como crime ambiental.
Por se tratar de uma idosa, que tem prioridade no trâmite das ações judiciais, a juíza da Inocência, Monique Rafaela Antunes Krieger, rapidamente marcou, em 10 de julho, uma audiência de conciliação chamando a Suzano e a Idosa para tentar fazer um acordo.
Depois de muitas tentativas de notificar a Suzano, a idosa mais uma vez teve que colocar a mão no bolso e pagar uma taxa para o oficial de Justiça notificar a gigante da celulose e a audiência foi marcada para o dia 7 de novembro. Contudo, ninguém da Suzano apareceu.
TERCEIRIZAÇÃO DA CULPA
Dias depois, em 2 de dezembro, porém, a empresa apresentou sua defesa à Justiça e, entre outros argumentos, alega que a principal responsável pelo suposto dano na propriedade vizinha é a empreiteira contratada para instalar o “porto seco”, a Construtora Fortes.
Além disso, alega que a enxurrada ocorreu em decorrência de uma chuva acima do normal e que não havia como prever que ela ocorreria naquelas proporções. No dia 10 de dezembro, segundo a Suzano, teriam sido 83,5 milímetros e no dia 12, mais 21,5 milímetros, totalizando 105 milímetros em dois dias, sendo que a média histórica para a região é de 114 milímetros para dezembro inteiro.
No documento em que se defende, a empresa não informa em quantas horas foi registrada esta chuva que ela considera catastrófica (para efeito de comparação, no final de abril o volume de chuva no Rio Grande do Sul foi cerca de dez vezes maior em dois dias).
A empresa diz, inclusive, que assoreamente semelhante poderia ter ocorrido mesmo que não houvesse obra na região. Na petição dos advogados da idosa, porém, eles alegam que os lagos existes faz mais de três décadas e que em eventos de chuva bem mais extremos nunca se registrou qualquer tipo de assoreamento.
Então, segundo a Suzano, por ter sido um evento atípico, a culpa é de São Pedro e ela não pode ser responsabilizada pelo dano causado à vizinha, embora tenha anexado uma série de imagens ao processo deixando claro que a lama que invadiu a propriedade saiu do canteiro de obras.
Outro argumento usado pela Suzano para tentar convencer a juíza é que a idosa tinha autorização legal para utilizar a água do dórrego e do lago somente para os bovinos. Ou seja, a água que ela usava para beber, tomar banho, cozinhar, lavar roupa e limpar a casa era irregular, segundo a empresa.
E, por conta desta suposta ilegalidade, a empresa não pode ser condenada agora a bancar a perfuração de um poço artesiano para que a senhora Áurea volte a ter água em abundância dentro de casa.
Em outro trecho, a Suzano alega que a água cedida pelo vizinho é de melhor qualidade que a água captada do córrego e que, por isso, não há necessidade de perfuração do poço. Com isso, a gigante da celulose , cujas fábricas só funcionam à beira de grandes rios, dá a ententer que a idosa deve depender pelo resto da vida da boa vontade do morador de outra fazenda para que ela tenha acesso a água limpa.
DE VILÃ A VÍTIMA
Na 13ª das 43 páginas de defesa apresentada à Justiça a Suzano chega inverter os papéis, sugerindo que a verdadeira vítima é a bilionária empresa, dizendo que “a presente ação é uma aventura jurídica em face da Suzano e sua presença no polo passivo da ação somente pode-se creditar à intenção da Autora de exercer alguma pressão ou algum constrangimento institucional/comercial sobre a dona da obra (daí porque inclusive mencionam a suposta ocorrência de crime ambiental a ser tratado em esfera própria – uma espécie de ameaça velada). Nada além disso”.
Em dezembro de 2023, logo depois da enxurrada que acabou com a fonte de água limpa na fazenda da idosa, a Suzano chegou a comunicar o Imasul sobre os estragos. O órgão estadual, porém, entendeu que o caso era irrelevante e cerca de seis meses depois concedeu a licença para operação do terminal intermodal.
Agora, a empresa usa exatamente essa licença como argumento de que não cometeu nenhuma irregularidade e que não pode ser responsabilizada para bancar o reabastecimento nem na casa da idosa nem para desassorear os lagos.
O caso ainda está longe de alguma solução. Dois dias depois que a Suzano apresentou sua defesa, a magistrada abriu prazo para que os advogados da idosa contestem a argumentação. E, mais de um ano depois da enxurrada, este prazo ainda não acabou e não existe previsão para que a juíza divulgue sua decisão.
O TERMINAL
Pelo “porto seco” que é pivô desta disputa judicial serão escoadas as 2,55 milhões de toneladas de celulose produzidas anualmente pela megafábrica de Ribas do Rio Pardo. Ele é parte de um projeto de R$ 22 bilhões de reais, o maior investimento já feito ao longo dos 100 anos da Suzano.
Ele tem área útil de 16,7 mil metros quadrados, um ramal ferroviário de 4.076 metros lineares e quase um quilômetro de asfalto ligando à MS-316. Além disso, tem depósitos gigantescos para armazenar a celulose.
Cerca de 50 pessoas trabalham durante 24 horas no local para descarregar o material que chega por caminhões e colocar nas locomotivas que vão até Santos, no litoral de São Paulo.