O relógio marcava 0h39 da madrugada desta quinta-feira (30), e já era feriado em Brasília quando a Câmara dos Deputados aprovou um pacote de projetos que acelera o envio de verbas a redutos eleitorais e diminui o controle sobre licitações de prefeituras. As propostas são criticadas por especialistas, que apontam riscos de desvios, falta de transparência e até formação de cartéis.
Um dos projetos, apresentado pelo deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA), permite que prefeituras embarquem em licitações de outros municípios comprando os mesmos produtos dos mesmos fornecedores sem abrir um novo procedimento.
O modelo é chamado de ata de registro de preços e serve apenas para compras recorrentes de coisas comuns, como copos descartáveis, materiais de limpeza e alimentos. De acordo com especialistas, a prática pode contaminar as licitações nos municípios, ao estabelecer os mesmos produtos e os mesmos fornecedores para cidades que possuem realidades diferentes. Além disso, se for constatado algum problema na contratação, como superfaturamento ou direcionamento para uma única empresa, todas são impactadas.
A adesão para contratações que não são recorrentes já causou desvios de dinheiro público, como nos casos de asfalto do orçamento secreto, compra de kits de robótica e gastos com bistecas não entregues para indígenas na Amazônia.
No total, foram aprovados quatro projetos apensados em um único, o que acontece normalmente quando propostas sobre o mesmo tema são apresentadas. O pacote foi aprovado com 307 votos favoráveis, 27 contrários e uma abstenção.
O relator, deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), não estava mais na Câmara e quem leu o parecer foi o deputado Domingos Sávio (PL-MG). O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também havia deixado o local antes da deliberação. A maioria dos deputados votou remotamente, pelo celular. No momento da aprovação, a quantidade de deputados presentes no plenário não passava de 50.
“Nós não sabemos o que estamos votando. Eu não posso nem ser contra, nem a favor, porque nós não sabemos”, disse a deputada Julia Zanatta (PL-SC), que votou contra. O deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB) votou a favor e disse que foi “convencido” por líderes partidários de que o projeto era bom, mas criticou a votação relâmpago na madrugada. “Precisamos ter previsibilidade e saber o que estamos votando.”
O bloco da maioria, que reúne os partidos com o maior número de parlamentares, não orientou a votação. “Vou seguir a maioria e vou embora. A maioria foi embora, presidente”, disse o deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES), provocando risos entre os colegas. Ele votou contra.
Prefeituras
O pacote deve facilitar o envio de verbas federais, incluindo as emendas parlamentares, para prefeituras em 2024, ano de eleições municipais. Prefeitos pressionam congressistas por envio mais rápido de dinheiro e entregas antes da disputa.
Outro projeto do pacote aprovado, de autoria da senadora Tereza Cristina (PP-MS), cria um regime simplificado para o envio de recursos federais a municípios que assinam convênios para receber a verba e fazer as obras.
Com a proposta, se o projeto custar até R$ 1,5 milhão, o dinheiro vai cair de uma só vez, de forma antecipada, e só depois a prefeitura vai executar o serviço. Antes, o pagamento era feito em parcelas e dependia do andamento da obra, o que gerava um controle maior, mas também reclamações de prefeitos e parlamentares em função da demora.
Além disso, se a obra custar menos do que o repasse enviado pelo governo federal, a prefeitura não terá mais que devolver o restante e poderá usar a sobra para ampliar o projeto. Por exemplo, se planejou pavimentar 20 ruas, poderá asfaltar mais cinco.
O modelo é uma resposta ao uso da emenda Pix, que também envolve o repasse direto de recursos para prefeituras, mas não é fiscalizada e tem provocado críticas de especialistas e órgãos de controle.
O regime simplificado prevê transferência direta e antecipada, mas ainda mantém a fiscalização federal com exigências técnicas como plano de trabalho, licenciamento ambiental e relatórios de acompanhamento – o que não acontece com a emenda Pix.
A adesão à emenda Pix cresceu e pode atingir R$ 12 bilhões em 2024, ano de eleição municipal, mas o uso tem incomodado alguns parlamentares, pois os prefeitos podem usar o dinheiro de qualquer maneira e muitos não gastam conforme a indicação do congressista.
Propostas sigilosas
O mesmo projeto abre uma brecha para diminuição da transparência em licitações e até a formação de cartéis. Em licitações com valores acima de R$ 1,5 milhão, empresas vão oferecer propostas de forma sigilosa para obras de engenharia, assistência técnica e serviços de limpeza urbana.
Nesse formato, chamado de modo de disputa fechado, as propostas de quem está interessado em vencer a licitação só são conhecidas no momento da divulgação e da abertura de todos os lances apresentados – o que pode facilitar a formação de conluios entre empreiteiras. O modelo já existe, e o projeto diz que, nas compras acima de R$ 1,5 milhão, essa vai ser a regra.
Para o procurador de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, o pacote traz preocupações no momento em que o valor das emendas parlamentares aumenta e a fiscalização diminui. “Os ingredientes do projeto nos mostram que a situação é gravíssima e, se tiver problema em uma licitação, o vício vai contaminar as licitações que embarcarem na mesma contratação”, disse. “Não se elimina a burocracia desrespeitando o patrimônio público. O projeto pode gerar uma concentração de mercado, que é nociva e vai na contramão do próprio princípio da licitação.”
‘Obra inacabada’
O relator do pacote, Elmar Nascimento (União-BA), afirmou no parecer que a proposta gera maior rapidez e eficiência nas compras e contratações por parte dos municípios. Agora, o texto irá à sanção ou veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Precisamos acabar com esse negócio de obra inacabada no Brasil e de perder dinheiro público porque não se consegue concluir uma licitação adequada”, disse Domingos Sávio.