Ação que pode anular o contrato de R$ 3,4 bilhões do Consórcio Guaicurus foi inserida em pauta para julgamento no próximo dia 20 de junho, a menos de um mês. O processo havia sido retirado de pauta em abril pelo relator desembargador Alexandre Raslan, mas foi incluído novamente na semana passada.
A data foi marcada após o delator e peça-chave para a ação, o advogado Sacha Breckenfeld Reck, ser condenado pela Justiça de Brasília por coordenar fraude na concorrência pública sobre a exploração do serviço de transporte coletivo no Distrito Federal. A soma das penas rendeu 8 anos de detenção em regime semiaberto, além de multa.
Apesar de, no Distrito Federal, o advogado ter sido condenado por fraude no processo de concessão do transporte público, por aqui, o delator de esquema que implica o contrato firmado na gestão de Nelsinho Trad (PSD) foi dispensado como testemunha de acusação.
Por ser considerado peça-chave para ‘entregar’ esquema de direcionamento da licitação, a atitude do MPMS causou estranheza, e foi comemorada pela defesa do Consórcio Guaicurus, que encarou a dispensa como um obstáculo a menos para ganhar a causa.
Por que Sacha Reck é peça-chave?
Em delação premiada firmada com o MPPR, o advogado que assessorou empresários do ônibus revelou como a licitação teria sido direcionada para o Consórcio Guaicurus. Foi a partir daí que o MPF (Ministério Público Federal) comunicou ao MPMS sobre o conteúdo da delação, e que se iniciaram os procedimentos para ingressar com a ação.
Aos promotores do Paraná, Reck revelou que houve exigência que partiu da então gestão municipal de Campo Grande para que mais de uma empresa participasse do certame. A missão ficou a cargo do advogado, que revelou ter intermediado para que uma empresa do Paraná participasse como ‘figurante’.
Condenação no DF
Os desembargadores da 3ª Turma Cível entenderam que a condenação deveria ser mantida, pois o exame dos autos revelou que os réus condenados agiam “de forma deliberada, engendraram grave esquema de fraude a contratações e a processo licitatório de expressiva importância final para o atendimento do interesse público da população do Distrito Federal, atos que redundaram na declaração de nulidade da Concorrência nº 01/2011-ST.”
Conforme decisão da 3ª Turma Cível do Distrito Federal, ficou comprovada a fraude, pois o grupo agia “de forma deliberada, engendraram grave esquema de fraude a contratações e a processo licitatório de expressiva importância final para o atendimento do interesse público da população do Distrito Federal, atos que redundaram na declaração de nulidade da Concorrência nº 01/2011-ST.”
A licitação no DF teria sido conduzida de forma viciada, com intuito de beneficiar conglomerado empresarial detentor de grande fatia do transporte público distrital, assim como “o comprometimento direto entre as empresas Viação Marechal e Viação Piracicabana com o escritório de advocacia Guilherme Gonçalves & Sacha Reck, que teria atuado de forma decisiva para o resultado da licitação”.
Delator indica que exigência em edital partiu da prefeitura de Campo Grande
Na delação que foi o estopim para a ação que pode anular o contrato com o Consórcio Guaicurus em Campo Grande, Sacha Reck indica que a exigência para incluir uma segunda empresa ‘figurante’ no certame partiu da prefeitura de Campo Grande.
“Surgiu a situação que nos foi passada de que a prefeitura queria que tivessem duas empresas, no mínimo. Não sei quem da prefeitura, mas que não dava para ser só o Consórcio participando da licitação”.
O advogado afirma, ainda, que teria avisado que “isso dá problema”.
Apesar de não identificar de quem partiu a ordem para incluir uma segunda empresa para dar impressão de que o edital estaria sendo realizado sem irregularidades, Sacha diz: “Não, sei, veio a determinação que tinha que ser, se era o prefeito (Nelsinho Trad), não sei… pedido totalmente despropositado e sem lógica, mas cabeça de político, os caras têm na cabeça deles que um consórcio só é monopólio e três não, depende, pensam que participar três empresas, quatro ou cinco é atestado de regularidade e não é isso”, complementa.
MPMS não considerou depoimento de delator importante
O MPMS afirmou que outras testemunhas ouvidas bastaram para esclarecer os fatos, em audiência de instrução realizada em junho de 2022.
Na época, o Ministério Público afirmou ao Jornal Midiamax que “na audiência foram ouvidas testemunhas que contribuíram para os esclarecimentos necessários sobre os fatos afirmados na inicial”. A promotora de Justiça Bianka Machado Arruda Mendes representou o MPMS na audiência.
Assim, Sasha Reck (advogado que delatou ao MP do Paraná direcionamento de licitação ao Consórcio Guaicurus em Campo Grande) e Marcelo Maran (delator que também prestou informações sobre irregularidades na concessão) foram dispensados pela promotoria. Os dois eram as principais testemunhas de acusação contra o Consórcio e o depoimento na audiência poderia ser crucial para sustentar a anulação do contrato bilionário com os empresários dos ônibus em Campo Grande.
A reportagem acionou novamente o MPMS para questionar sobre o caso, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para manifestação.
Prisão de Sacha
O advogado e ex-consultor do Consórcio Guaicurus, Sacha Reck foi preso em 2016 com outras cinco pessoas, durante a 1ª fase da Operação Riquixá — que tinha como objetivo desmontar suposta organização criminosa que fraudava licitações de transporte coletivo no Paraná. Após ser preso na operação do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), Sacha fez um acordo de colaboração premiada com o Ministério Público do Paraná e revelou um esquema de fraude que teria sido utilizado em 19 cidades do país, inclusive Campo Grande.
Irregularidades apontadas pelo MPMS na concessão do transporte
No processo, o MPMS elencou uma série de irregularidades identificadas durante a investigação e que, na visão da 30ª Promotoria de Justiça de Campo Grande, são suficientes para anulação do contrato.
- apresentação de garantia de proposta das empresas concorrentes antes da sessão pública de abertura dos envelopes com as propostas;
- determinação do município de que empresa vencedora pagasse R$ 5,5 milhões ao município em 180 dias;
- ausência de justificativa técnica da empresa vencedora sobre exigências de frota e serviço;
- modelo da licitação no formato melhor técnica e preço que reduziu a competitividade do certame;
- ausência de parecer técnico que justificasse a composição do valor da outorga estabelecido em 70% “técnica” e 30% “preço”;
- irregularidade do município em cobrar R$ 3 mil das empresas concorrentes para retirar cópia de documentação física referente ao edital de concorrência.
Todas as irregularidades apresentadas pelo MPMS são, ao longo dos anos, rebatidas tanto pela prefeitura de Campo Grande quanto pelo Consórcio Guaicurus. Atualmente, o processo possui 17,1 mil páginas.
“Após a audiência, o MP terá o prazo de 30 dias para apresentar as alegações finais, assim como as outras partes, para, em seguida, ser proferida a sentença”, afirmou o Ministério. A assessoria do juiz que conduziu as oitivas desta terça-feira (28) afirmou que o processo segue para alegações finais.
Firmado em 2012
O processo licitatório se encerrou em outubro de 2012 com a declaração das empresas Viação Cidade Morena, São Francisco, Jaguar Transportes Urbanos e Viação Campo Grande — que formaram o Consórcio Guaicurus — como vencedoras. O grupo apresentou proposta de R$ 20 milhões. O encerramento da licitação se deu pouco mais de dois meses antes do fim do mandato de Nelsinho Trad, atual senador, como prefeito de Campo Grande. Justamente uma das testemunhas do Consórcio, que deu ao grupo de empresas o direito de faturar até R$ 3,4 bilhões explorando o transporte da cidade durante 20 anos.
O contrato da concessão, assinado em 25 de outubro de 2012, tem como partes o então prefeito Nelson Trad, o diretor da Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito), Rudel Trindade, o então diretor da Agereg (Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos), Marcelo Luiz Bonfim do Amaral, e Nelson Guenshi Asato, empresário representante das quatro empresas de transporte que formam o Consórcio.
A ação civil pública apresentada pelo MP tem como réu apenas a figura jurídica da prefeitura de Campo Grande, ou seja, mesmo prefeito à época, o então prefeito Nelson Trad Filho escapou de ser réu na ação.