No sertão do Ceará, a pouco mais de 200 quilômetros da capital Fortaleza, os 43 mil habitantes de um pequeno município vivem à sombra de uma montanha. A imensa elevação rochosa que marca a paisagem de Santa Quitéria não funciona apenas como um escudo contra o sol escaldante do semiárido nordestino. Ela também concentra a maior reserva de urânio do paísmatéria-prima para a geração de energia nuclear.
Há pelo menos duas décadas, os moradores ouvem promessas de que a extração do minério vai trazer riqueza e empregos. O projeto, no entanto, enfrenta resistência, principalmente na zona rural. A população teme que a radiação do urânio gere problemas de saúde e que a mineração consuma boa parte das já escassas reservas de água da região. Após 20 anos de idas e vindas, a exploração nunca esteve tão perto de sair do papel.
Descoberta em 1974, a jazida também contém também fosfato, além de urânio, e representa um negócio estratégico para o Consórcio Santa Quitéria – formado pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e pela empresa Galvani, do setor de fertilizantes.
Em nota enviada à reportagem, o grupo nega que a exploração da mina vá comprometer o abastecimento de água no município. Já sobre os riscos de contaminação, o texto sustenta que “não há evidências de efeitos adversos à saúde em doses baixas, como é o caso do urânio em seu estado natural”. (leia a resposta na íntegra)
No imaginário popular local, porém, a exploração do minério assume as feições de um “dragão nuclear”. No final de novembro, dezenas de pessoas fizeram uma passeata contra o projeto, lideradas pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Munida de cartazes e gritando “água sim, urânio não”, uma maioria de agricultores familiares percorreu as ruas da cidade até a sede do consórcio.
Um dragão de pano e papelão, representando os efeitos nocivos da radiação, acompanhou o ato e foi queimado simbolicamente em frente ao mercado municipal. “Sou contra a exploração da mina”, disse Valdemar Magalhães, 75, enquanto empurrava sua bicicleta. “O açude não aguenta. Se hoje a gente já fica sem água em casa, imagina com a mineração usando a nossa água?”
Licenciamento ambiental
A apreensão da população de Santa Quitéria tem motivo: o início da extração de urânio parece cada vez mais próximo. Em setembro, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), vinculada ao governo federal, deu sinal verde para a exploração do fosfato, insumo básico para a indústria de fertilizantes. Agora, o órgão analisa a autorização da mineração do urânio. Em nível estadual, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), já assinou um memorando para alinhar compromissos com o Consórcio.
Além disso, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) aguarda a entrega do estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA) até o final deste mês. Essa etapa é crucial para a aprovação do licenciamento ambiental do empreendimento – é a terceira vez em duas décadas que o consórcio tenta cumprir essa exigência.
A primeira ocorreu em 2004, quando chegou a obter a licença prévia da Secretaria de Meio Ambiente do Ceará. Porém, após uma ação movida pelo MPF (Ministério Público Federal), a Justiça determinou que a concessão seria de competência do Ibama, anulando a concessão estadual.
Em 2015 o empreendimento entregou ao órgão federal o estudo de impacto ambiental, mas o licenciamento foi negado quatro anos depois. “Havia tantas falhas que não era possível atestar nem mesmo a inviabilidade técnica do projeto”, afirmou um servidor do Ibama que preferiu não ser identificado. A terceira tentativa está em curso desde 2020.
Após a entrega do estudo de impacto, o órgão federal tem ao menos um ano para analisar o documento e decidir pela concessão ou não da licença. “O Ibama agora é o ponto focal para o projeto avançar”, afirma Carlos Freire Moreira, presidente da Aben (Associação Brasileira de Energia Nuclear) e ex-presidente da INB. Segundo o servidor ouvido pela reportagem, há “muitas questões difíceis de serem solucionadas”. A principal delas é a água, consumida em larga escala no processo de extração e beneficiamento do minério.
Apenas metade da população de Santa Quitéria tem acesso a água encanada, segundo o Sistema Nacional de Informações de Saneamento. Não à toa, o município está entre as 20 cidades do Ceará com a maior quantidade de cisternas, de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.
O projeto prevê que o açude Edson Queiroz, distante 15 quilômetros do centro da cidade e responsável por abastecer todo o município, também servirá de fonte para a mineração. Para fazer chegar até a jazida os 855 mil litros de água por hora que a operação necessita, o governo do Ceará se comprometeu a construir uma adutora.
O consórcio Santa Quitéria afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a adutora abastecerá também a população de um distrito e dois assentamentos no entorno da fazenda Itataia, onde fica a mina. “Estas localidades, que sofrem atualmente com a escassez de água, terão acesso a água tratada e suficiente para atender 100% da população desses assentamentos”.
A oferta, no entanto, é vista como “chantagem” pela população. “Não precisa de mineração para dar acesso a água para as pessoas”, diz Pedro D’Androsa, membro do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
‘Riqueza de um lado, pobreza do outro’
Nos últimos anos, uma conjunção de eventos vem impulsionando o projeto de extração de minério das jazidas de Santa Quitéria. Dentre elas, as políticas de incentivo à energia nuclear retomadas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a Guerra da Ucrânia, que alavancou o debate sobre a dependência brasileira do fosfato russo, essencial à fabricação de fertilizantes usados pelo agronegócio.
O consórcio prevê que a maioria da produção da jazida será de fosfato – e só 0,2% de urânio. Apesar do pequeno percentual, a produção estimada impressiona: 2,3 mil toneladas de urânio por ano, o que faz da mina de Santa Quitéria o maior depósito deste elemento químico da América Latina, segundo Moreira.
Em Caetité (BA), único local onde há mineração de urânio hoje no Brasil, a capacidade de produção é de 400 toneladas por ano. Também explorada pela INB, a operação na Bahia está sob investigação do Ministério Público do Estado da Bahia devido a denúncias de contaminação da água na região.
“Nosso medo é que Santa Quitéria seja a nova Caetité”, diz a agricultora Liduina de Almeida Paiva, 47. “Lá é a riqueza do urânio de um lado, e a pobreza da população do outro”, complementa. Ela vive em uma das 156 comunidades que o movimento popular calcula que serão afetadas pelo empreendimento.
A agricultora Patrícia Gomes, 31, também mora em uma dessas comunidades, a dois quilômetros da mina. Ela acredita que a radiação seja a responsável pela doença de seus familiares. “Meu pai trabalhou na abertura da galeria da mina, na década de 1970, e morreu de câncer no intestino”, conta ela. “Já a minha mãe cozinhava e lavava a roupa dos trabalhadores, e teve câncer de estômago”. Patrícia tem um lote no assentamento Queimadas, onde também há outras 17 famílias.
Entretanto, não há estudos que comprovem a relação entre a mina e os casos de câncer enfrentados por familiares de Patrícia ou por outros moradores. Dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, consultados pela Repórter Brasilmostram que Santa Quitéria não figura entre os municípios cearenses com os maiores índices da doença no estado. Casos registrados de todos os tipos da doença vêm aumentando nas últimas décadas, mas seguem uma curva geral.
Professora do curso de engenharia nuclear da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Inayá Corrêa Barbosa Lima afirma que a preocupação dos moradores é legítima, mas ocorre devido à falta de clareza na comunicação sobre os impactos. “Os benefícios socioeconômicos são muito maiores do que qualquer risco futuro”, afirma a docente. “Há muitas normas que são seguidas e o setor de mineração tem avançado bastante em termos de tecnologias mais seguras”, acrescenta.
Na opinião de Elisabeth Mateus Yoshimura, professora do Departamento de Física Nuclear do Instituto de Física da USP, a mineração de urânio merece atenção redobrada. “O movimento de tirar o material do subsolo gera uma poeira radioativa que vai se depositar nas plantas, na terra e isso precisa ser minimizado”, explica. “E a água utilizada no processamento também precisa de um tratamento em decorrência dos produtos químicos utilizados na mineração”, complementa.
Yoshimura reflete ainda sobre as contrapartidas oferecidas pelas mineradoras e pelo poder público. “Esse ajuste precisa ser bom. As pessoas vão receber um pagamento justo? Vão trabalhar com a segurança adequada, protegidas da radiação?”, questiona.
No mês passado, o CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), vinculado ao governo federal, aprovou um relatório sobre as violações relacionadas ao projeto de mineração. Dentre a série de apontamentos, o documento elenca a escassez hídrica, a falta de escuta à população local e a omissão dos riscos relacionados à radiação.
O consórcio afirma que tem apresentado e discutido o projeto “abertamente com representantes da sociedade civil de diversas localidades. Como parte desse processo, também foram realizadas audiências públicas em Santa Quitéria, Itatira e Canindé em junho de 2022”. O empreendimento afirma também que a operação não aumentará o número de casos de câncer na região, nem contaminará a água, ar, solo, lavouras ou criações de animais.
Antônio Ferreira Duarte, diretor-geral do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, acredita que é preciso informar melhor a sociedade sobre o projeto. “As pessoas têm medo daquilo que não conhecem”, diz.
Enquanto o consórcio tenta vencer as etapas burocráticas, a população teme o despertar da mina, um gigante que antes só acordava a cada dois anos. “A gente ouvia falar mais sobre a mina em período eleitoral”, diz Liduína. “Trocavam votos pela promessa de empregos na mineração”.
A Repórter Brasil solicitou entrevistas com a prefeita de Santa Quitéria, Lígia Protásio (PP), e com o governador Elmano Freitas, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. O texto será atualizado caso os posicionamentos sejam enviados.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil